quinta-feira, dezembro 07, 2006

Mestre Aquilino e a "música dos pretalhões"

Se há livro imprescindível em qualquer biblioteca exigente, entre os que foram editados nos últimos anos em Portugal, é a Crónica Jornalística - Século XX, excelente antologia organizada por Fernando Venâncio (nosso colega de lides bloguísticas, que mantém presença assídua no profiláctico Aspirina B) com a chancela do Círculo de Leitores. São cem textos que atravessam cem anos - desde uma crónica de Mayer Garção que dá nota da primeira alvorada do século até uma prosa de Onésimo Teotónio Almeida, escrita já no ano 2000. De caminho, encontramos parágrafos inesquecíveis de alguns dos melhores escritores portugueses - de Fernando Pessoa a Vasco Graça Moura, de José Régio a Mário de Carvalho, de Vitorino Nemésio a Fernando Assis Pacheco, passando por Rodrigues Miguéis, Jorge de Sena, Vergílio Ferreira, Cardoso Pires, Alexandre O'Neill, Sttau Monteiro e tantos outros. Não faltam também muitos nomes ilustres que durante décadas têm circulado na imprensa portuguesa: Rocha Martins, Gaspar Simões, Norberto Araújo, Raul Rego, Baptista-Bastos, Artur Portela Filho, Eduardo Guerra Carneiro, Miguel Esteves Cardoso, Vasco Pulido Valente, Arnaldo Saraiva, Inês Pedrosa, Francisco José Viegas.
Uma das crónicas que mais me impressionou é assinada por Aquilino Ribeiro e foi originalmente publicada no semanário A Ilustração, em 1926, logo após a implantação da ditadura do 28 de Maio. Impressionou-me não pelo estilo nem pelas ideias, mas pelo atávico conservadorismo do escritor, considerado um dos grandes vultos da nossa intelectualidade progressista. Ao escrever sobre dois fenómenos do século XX, como o jazz e o futebol, mestre Aquilino exprime opiniões que poderiam ser subscritas pelo mais ultramontano defensor do Estado Novo.
Seguem uns excertos.
Sobre o jazz:
- "O jazz band costumava oferecer-se em espectáculo na feira de Alcântara, numa barraca de ripas e lona, miserável, rudimentar e cachaceiro. (..) Ninguém que se prezasse se dava ao desenfado de ir ouvir a música bárbara dos pretalhões e seus saracoteios obscenos. Não porque fosse interdita ao pudor; mas porque era apenas uma diversão sem graça nenhuma."
Sobre o futebol:
- "O futebol vai-se tornando o mane-tecel-phares de uma população de impaludados, de sifilíticos e alcoólicos na sua maioria. (...) Como se pôde enraizar entre nós um desporto tão contrário ao nosso habitat e aos nossos costumes? (...) De todos os jogos, é sem dúvida este o mais estúpido e inconsequente."
Eis a prova (duas provas, aliás) de que também a esquerda pode ser profundamente reaccionária. Aquilino Ribeiro - convém sublinhar - sempre foi de esquerda.