quinta-feira, dezembro 28, 2006

Colecção de crónicas (III)


Há cidades mais literárias, locais que despertam a fantasia dos escritores e que parecem palpitar da mesma forma desvairada que os corações subitamente arrancados a corpos indefesos. Lisboa é literária, como são Nova Iorque, Praga, Paris ou Budapeste. Mas estes são casos raros. Não apetece inventar histórias em Genebra ou Bruxelas.
Ao tentar explicar isto pela razão, encontro a possibilidade de as pedras terem também uma espécie de alma, como se fossem pessoas, embora o ciclo de vida (nascimento, crescimento e decadência) seja tão longo que nem nos apercebemos da sua respiração inaudível. E assim é com certas cidades ou locais, onde se pode imaginar a vasta circulação humana separada daquela que pertence exclusivamente às pedras. A forma desliza, como se fosse maré; e as personagens ganham vida autónoma, pois a imaginação liga-se, por um instante, à poderosa magia desses corpos a que chamamos cidades.
Adem ou Alexandria têm ressonâncias magnéticas. Mas estas vibrações interiores não são um exclusivo de cidades habitadas. O deserto mais vazio pode produzir inconcebíveis fantasias, talvez porque aí estamos perante a nudez absoluta da pedra.
Ao escrever estas linhas, lembrei-me da atmosfera densa e exótica, cheia de luz e sombra, de Morocco, o filme de Josef von Sternberg sobre o abismo da paixão e o carácter inelutável da consequente queda. O mesmo abismo que li em O Céu que nos Protege, de Paul Bowles, que por sua vez me faz lembrar um pequeno conto de Camus, também sobre o deserto como paisagem, visto a partir de uma muralha numa cidade na orla do nada. Nesse texto, o vento é praticamente a personagem principal.
Em Morocco, Marlene Dietrich viaja sem bilhete de volta, só o de ida, porque em busca destas cidades perdidas andam personagens à deriva, peregrinos que não voltarão jamais do seu destino fatal.

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