sexta-feira, outubro 13, 2006

As fugas de Sócrates

O José Teles, um dos melhores jornalistas com quem trabalhei (neste caso, no antigo Semanário), veio visitar-nos. Esteve a dar uma vista de olhos ao Corta-fitas (parece que gostou) e mandou-me uma nota muito simpática, que aqui reproduzo em parte, com a devida autorização. A nota - belíssima e num estilo que vai escasseando na nossa imprensa, cada vez mais avessa ao uso da memória - também serve de resposta a um post do nosso João Villalobos. Sans rancune, frisou.

Eu acho que o Sócrates ontem na Assembleia "não fugiu dos jornalistas", como terá sugerido a reportagem da SIC e será seguramente tema de conversa em família para o Cintra Torres nos próximos tempos. Estive lá. Ele acabava de fazer umas declarações, que podem não ter sido muito interessantes mas podiam ter merecido alguma atenção. Mas sobretudo eram 15 horas, ainda muitos dos autocarros da manifestação vinham a caminho. Ora não se pode exigir um comentário a algo que ainda não aconteceu. Faz-me lembrar uma célebre crítica televisiva no Jornal, aliás muito corrosiva, a um programa, com o Raul Solnado, que afinal não tinha sido emitido. Foi a seguir ao PREC. Mas nem isso serviu de desculpa: o Jornal despediu o crítico televisivo, depois do Veiga Pereira ter feito no Telejornal um relato delicioso do acontecido.
Sei que os repórteres que atacaram o Sócrates de microfone em punho a exigir a reacção a uma manifestação que ainda não se dera (e até podia fazer cair o Governo! ou obrigar à retirada de todas as leis em prepraração sobre aquelas matérias, em França aconteceu! ) não sabem destas brincadeiras do PREC, não têm memória, obcecados como estão no PREC deles, que é o que faz "vender papel" e dá espectáculo à plebe, que faz as audiências.. Mas não podem os queridos colegas obrigar um Primeiro-Ministro, que se respeita, a FALAR NO AR, antes de uma manifestação. Por "respeito" aos próprios manifestantes! Ou já chegámos à Madeira?.
E já agora: estranhei a falta de interesse dos mesmos repórteres em relação às caravanas de autocarros, que trouxeram os manifestantes, e que por volta das 19 horas ocupavam toda a 24 de Julho, do Cais Sodré até Santos, a recolher os trabalhadores, cansados de tanto andar.. Não, não sou contra os sindicatos nem contra as autarquias, que poderão ter pago a deslocação a Lisboa de tantos militantes encartados, delegados sindicais com horas pagas. Pois se é legal! O meu problema é mais uma vez com "as brumas da memória, ó Pátria...". Um discurso de Salazar no Verão de 63, ou 64, a dizer que era tempo de dar a palavra ao Povo sobre a política do Governo na defesa da Pátria multissecular e multicontinental (leia-se "na guerra colonial"). Palavra de honra: era muito jovem mas lembro-me perfeitamente. Foi grande a emoção. Iria fazer um referendo? Com os cadernos eleitorais que o Governo manipulava? Com contagens de votos aldrabadas, como acontecera nas eleições do Humberto Delgado, e foi documentalmente provado muitos anos depois pela jornalista Vera Lagoa?
Referendo? Cadernos eleitorais? Contagem de votos? Que ingénuo eu era! Aquele "grande português" tinha na manga: dias depois fez-se uma manifestação nacional no Terreiro do Paço, com autocarros vindos de todas as vilas e aldeias, viagens pagas a todos quantos quisessem "vir ver Lisboa"... Foi um sucesso! E valha a verdade, testemunhei os dois acontecimentos, havia mais gente na manifestação de apoio à política ultramarina no Verão de 64 do que ontem na manifestação a exigir a demissão do Primeiro-Ministro e do Ministro das Finanças (não, isso é o Alberto João!, a CGTP ainda está na fase da "a luta continua...", "o Governo para a rua" vem a caminho. Em muitos autocarros alugados.


José Teles