sexta-feira, agosto 18, 2006

Pés-de-microfone

O jornalismo deixou de ser uma causa, uma vocação que se abraça com gosto, uma missão de serviço público, para passar a ser uma "coisa gira" que se experimenta durante dois ou três anos, "para ver como é", até se dar o salto para a ansiada assessoria de imprensa ou a sonhada cadeirinha na agência de comunicação pertencente ao amigo do amigo que nos deve uns favores. Nos últimos anos, a atitude mental de muitos jornalistas mudou. O "poder da pergunta", de que nos falava Milan Kundera, deixa demasiadas vezes de ser exercido por imperativo deontológico, dando lugar à questãozinha reverente, veneradora e obrigada, feita à medida dos desígnios do interpelado, "a bem da Nação". Na gíria jornalística, chamamos "pés-de-microfone" a esta gente. O nome não podia ser mais apropriado.
Ouvi há dias um destes "pé-de-microfone" - espécie em vias de expansão. Tinha um ministro pela frente e quase corava de vergonha (seria de emoção?) perante a iminência de o interrogar em directo. A perguntinha inócua lá saiu, sem beliscar a imensa autoridade do Senhor Ministro, que logo transformou aquela oportunidade em puro tempo de antena, sem sombra de contraditório.
Confesso que cheguei a ter pena daquele braço estendido à torrente verbal do governante. Já devia estar dormente, assim esticado durante largos minutos, segurando com tanto zelo o microfone...