Corta-fitas, inaugurações
Perdi a conta às vezes que, de bloco na mão e gravador em punho, assisti à inauguração, ao descerrar da placa, ao levantar da cancela, ao hino tocado pela banda filarmónica e aos versos ditos por uma menina de vestido de folhos, papelinho numa mão, ramo de flores na outra. Sei o que diz a placa, o que querem dizer os versos. Todos falam do presidente, da sua imensa dedicação, da sua luta, das suas conquistas. Da estrada de asfalto negro que subiu pela montanha, da luz que iluminou as casas, das festas pelas freguesias e sítios, com vinho e espetada.
Conheço o ritual. Chega o carro, com a bandeirinha do governo a esvoaçar. De dentro, sai o homem apressado, cumprimenta todos com um "vai isso" e um "está boazinha". Há empurrões, apertões, caras cheias de sorrisos. Se for uma escola, nada começa sem tirar a bandeira azul e amarela à placa. Depois, o povo avoluma-se atrás do presidente para ver as salas de aulas, a cantina e a secretaria. Se a obra é uma estrada (de 100 ou 500 metros), espera-se pelo mexer da cancela e segue-se o líder como quem vai atrás do andor na procissão.
Nas imediações, há sandes de queijo em mesas improvisadas e um braseiro preparado para assar a carne no espeto. A comida só chega à boca com a visita terminada e o discurso feito. Num palanque ou pelo megafone que emerge sempre da multidão quando não há outro meio de fazer chegar a voz ao povo. Tão devoto, não perde as intervenções políticas. Ri das piadas brejeiras, aplaude as denúncias sobre o Terreiro do Paço e manifesta-se contra o garrote financeiro da República. Ri e aplaude, mas só exalta de júbilo quando a política passa à História e as mesas abrem às hostilidades. Carne assada com croquetes, pastéis de bacalhau com bolo de mel. Vinho seco ou uísque, brisa maracujá ou sumo de laranja. A propósito, o que será o garrote financeiro, onde fica o Terreiro do Paço?