domingo, agosto 20, 2006

Antes que a vida nos mude a nós (crónica)

Durante muito tempo deixei-me ir e vir de carro. Singrei nas estatísticas dos cidadãos automobilizados que diariamente engarrafavam as vias de acesso à capital. Todos os dias, sem falta, no meu carro a uma média de 20 km por hora, eu percorria vaidoso e solitário, cerca de 30 km para Lisboa pela manhã e igual dose para casa ao final da tarde. Impulsionado por cerca de 100 cavalos, e por uma ilusória sensação de poder, andei eu ao sabor dos caprichos do trânsito da Marginal, sempre pelo mesmo caminho, mas “cheio de liberdade de movimentos”. Diariamente, ouvia pela rádio as tendências do mercado bolsista onde nunca joguei nem pretendo gastar um tostão. Com a companhia da telefonia, muito me irritei com as constantes e leais notícias do trânsito, que previsivelmente nada adiantavam. A rotina do “pára-arranca” motorizado constituía no mínimo duas preciosas horas do meu dia.
Ao contrário de outros nunca senti razão de monta para me "desculpar" com as condições da oferta de transportes públicos de Lisboa. Na verdade as minhas esporádicas experiências decorriam a maior parte das vezes dentro dos limites do aceitável. Nas regulares visitas à minha envelhecida mãe algures nas avenidas novas, e noutras movimentações em trabalho dentro de Lisboa, a solução do transporte público sempre se revelava bastante eficiente.
Gradualmente fui-me apercebendo de que estava cada vez mais “dependente” e estupidificado pelo automóvel, que se revelava um isolante e insolente “aquário” a privar-me da vida e do pulsar da minha cidade: do cigano que apregoa a roupa “de marca” junto à estação, da paisagem que é viva de gente, de detalhes e nuances, nos monumentos, nas cores dos prédios, ou nuns olhos tristes de um qualquer passageiro cúmplice.
Há uns meses, simbolicamente, troquei um excedente e inútil cartão de crédito pelo passe social na minha carteira. Na posse desse mágico cartão revivi sensações antigas e descobri que me tornava mais livre. Agora, na pasta, trago um livro a preceito para me acompanhar nas quotidianas viagens. Hoje, gasto solas e calcorreio ruas, escadas e avenidas, misturo-me na minha cidade em movimento. Até, quem sabe, já nem necessite de um estúpido ginásio para mexer mais este meu revigorado corpo. E o novo “espaço” que ganhei para praticar a inteligência de ver as coisas da minha vida mais “adentro”, com mais perspectiva e menos stress?
De resto, ganhei um pouco de autoridade moral, no que refere as estas angustiantes “coisas da ecologia e da poluição”, sempre culpa dos governos e dos americanos: um assunto demasiadamente sério e sobre o qual, tão cedo, nenhum executivo ocidental terá coragem de agir, por forma a não incomodar o consumidor/eleitor, e colidir com a sua sagrada liberdade individual.

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