Em louvor do cinema (crónica)
Na escuridão da sala, ocorre-me o que eu seria sem esta janela do imaginário. Mais pobre, certamente. E alguns sonhos esquecidos tomam-me de assalto, como fantasmas. Devia ser criança quando vi imagens do filme que até hoje mais me impressionou; sei que era A Patrulha da Alvorada, de Howard Hawks, de 1930; passava na televisão; os meus pais mandaram-me para a cama, acho, e nunca mais vi o filme. Era uma história de guerra, com pilotos, sobre o destino e a honra. Mas resta-me a memória idealizada de um filme que não posso de todo lembrar.
Tinha uns 15 anos quando vi outra obra-prima, chamada Barry Lyndon, de Stanley Kubrick, realizada em 1975. Lembro-me de ter pensado assim: “Ah, então é isto o cinema!”
Mas se me perguntassem o que era, não poderia definir. A prisão de um movimento; a cor que foge, como se fosse uma borboleta; muitas vezes, apenas um padrão de cinzento, entre inúmeros contrastes de preto e branco; um sorriso, um gesto, uma palavra; a história de alguém; é um agarrar de coisas que não existem; o transporte para mundos de fantasia. É talvez coisa sonhada, nada em concreto, apenas luz. Em resumo, o universo com um tempo próprio.
Lembro-me de filmes dos quais vi fugazes instantes e que nunca consegui ver por inteiro: uma incursão misteriosa na Atlântida (talvez Pabst), e The Shape of Things to Come, que persigo obsessivamente. É sobre eles que me apetece escrever, mas não me lembro.
E de outras maravilhas, guardo momentos, de Rashomon, Johnny Guitar, de Satyricon. E lembro-me de John Wayne em They Were Expendable (John Ford), sem dúvida um dos mais belos filmes de sempre.
Digo sem dúvida, mas é tolice. Enfim, não passa da minha sensação, porque mais belo é um conceito frágil, que depende menos da beleza de quem é visto do que do desejo de quem vê. Da vontade de agarrar o efémero e de ficar ali, na escuridão, a viver.
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