Trabalho político
A cena que se passou esta quarta-feira na Assembleia da República merece algumas observações, porque é do mais lamentável que se tem visto. Só que era previsível.
Primeiro, atente-se ao facto de, durante essa tarde, portanto antes das votações que iriam decorrer entre as 18h e as 19h, terem passado pelo hemiciclo 194 deputados, 114 dos quais pertencentes à maioria do PS, 52 ao PSD, dez ao PCP, nove ao CDS, sete ao Bloco e dois aos Verdes. Os 114 deputados socialistas, mais um ou outro de outros partidos, teriam sido mais que suficientes para assegurar as 116 (metade dos 230 deputados mais um) presenças para que houvesse quórum nas votações (que incluiam a transposição de várias directivas comunitárias).
Acontece que nada disto se passou, só 110 lá estavam. Durante a tarde houve um regabofe de entradas e saídas de deputados que iam assinar o livro de presenças e... ala que se faz tarde. Estava lá e vi. Alguns chegaram a ir pedir o livro de presenças à mesa da presidência da AR porque já não estava lá em baixo, junto às bancadas. Paulo Portas, por exemplo, antigo presidente de um "partido de Governo", como gostava de dizer, e ex-ministro de Estado e da Defesa Nacional, esteve exactamente um minuto no plenário. Leram bem? Um minuto. Entrou, distribuiu alguns cumprimentos de circunstância com o seu fatinho cinzento claro (que nem comento), assinou o livro (para o qual até teve de pedir uma caneta emprestada) e saiu. Segundo consta, foi fazer "trabalho político"
Ora é justamente este argumento que os deputados irão usar para escaparem às "multas" que constam do seu estatuto e que supostamente Jaime Gama quer fazer aplicar. Faltaram porque estavam em "trabalho político", ainda por cima as votações acabaram por não ser à hora marcada (18h) e só começaram depois das 19h. A maior parte dirá que estava já com compromissos inadiáveis com os seus eleitores, com os militantes do partido, etc. Como a figura do "trabalho político" não carece de prova, a palavra dos deputados irá fazer "fé". E Jaime Gama poderá ter dificuldades em descontar-lhes no ordenado os pouco mais de 170 euros.
É preciso alterar isto, voltar a mexer no estatuto dos deputados, apertar a malha. Olhe-se para a Casa dos Comuns em Inglaterra, sempre cheia, com deputados que até se sentam nas escadas em dias de debate entre o primeiro-ministro e o líder da oposição. Aqui não, para muitos (não para todos) ser deputado é estar à espera de qualquer coisa. Uns esperam que os ventos voltem a estar de feição, outros esperam poder pensar mais alto, outros esperam conseguir ser sempre bem comportadinhos para voltarem a entrar nas listas. Mas nós desesperamos perante situações destas.