quinta-feira, janeiro 03, 2008

Cadernos de Filosofia Política de Adolfo Ernesto (XIV)



O sindicato

Não é só no Quénia ou no Paquistão que há violência. Assisti a um tumulto que rivalizou, por breves instantes, com situações caóticas típicas dessas regiões inóspitas.
Tudo aconteceu no restaurante onde se celebrava o almoço anual do sindicato dos gestores. O ambiente, já de si, era escaldante. Dada a minha fama de bombeiro voluntário, o senhor Silva, pacato proprietário do dito restaurante (ainda por cima chamado O Cavaco), pediu a minha comparência, com farda, para apagar qualquer fogo que viesse a surgir. Estava lá também para fazer cumprir as leis da república, embora apenas na condição de cidadão.
Foi já na fase dos discursos que a situação se agravou. Um homem obeso, com uma comenda na lapela, ergueu-se e deu as boas vindas aos 50 convidados:
“Ilustres gestores”, disse ele, “é com pesar no coração que vos recebo neste almoço comemorativo do aniversário da criação da nossa influente agremiação. Pesar no coração devido às palavras que o nosso líder transmitiu ao país, criticando os nossos salários, ou melhor, a diferença entre os nossos salários e os que recebem os nossos trabalhadores...”
“Apoiado...” ouviu-se na sala.
“Pelo contrário, ilustre sócio, não apoiado! Considero um escândalo que um dos pilares do regime nos critique. Temos salários altos? Sim, mas ainda não o suficiente. Carros de serviço? Chamar ao meu jaguar artilhado um carro de serviço é um escândalo. Ganhamos duzentas vezes mais do que os nossos funcionários... perdão, colaboradores? Retórica da esquerda! Críticas próprias do PREC! Um despautério, num órgão eleito. Toda a gente sabe que a diferença devia ser ainda maior.”
Houve uma pausa para lautos aplausos. E, depois, o orador prosseguiu.
“Se possuímos privilégios, é porque a nossa posição social assim o ditou. As quotas partidárias estão em dia, porque nos criticam? E mais, exigimos aumentos salariais, este ano, de 100%, porque a produtividade dos nossos trabalhadores só aumentou 3%, falhámos em toda a linha na elaboração de uma estratégia coerente para as nossas empresas e não criámos valor accionista. Por tudo isso, merecemos os privilégios de que gozamos, mais os chorudos prémios, as prebendas e bónus. Querem pauperizar a nossa classe? Mas não passarão, camaradas! Perdão, queridos confrades e consócios. Temos de nos erguer, indignados, contra as críticas às nossas benesses”.
Na sala houve um frémito de entusiasmo. Os gestores, galvanizados, ergueram-se em aplausos estrondosos.
“Viva o nosso sindicato”, gritava um dos gestores, muito gordo.
E seguiram-se palavras de ordem, das quais recordo as mais importantes:
“Descapitalizemos as nossas empresas!”
“Os barris de petróleo aumentam, os gestores não aguentam!”
“Vigésimo quinto mês, já!”
“Tragam mais champanhe!”
Embora houvesse copos pelo chão e algum tumulto na mesa, o almoço do sindicato dos gestores tinha até ali corrido de forma civilizada. Tudo descambou quando um dos gestores sacou de um enorme charuto. Ao que foi imitado pelos 50 gestores. De súbito, havia 50 charutos acesos naquela sala.
Na minha qualidade de cidadão bombeiro, não hesitei perante aquele nítido abuso. Puxei da mangueira de serviço e dirigi um poderoso jacto de água para aquela turba de poluidores-pagadores.
Houve um pânico, uma debandada. Em menos de trinta segundos, o capitalismo selvagem tinha ido por água abaixo.
Ainda recordo com nostalgia a figura pingada de um dos gestores que saía do restaurante do senhor Silva, numa indignação, o charuto apagado preso aos dentes. Olhou para a fileira de lindos topo de gama e disse:
“Isto de trocar de carro cada três semanas dá sempre nisto! Qual deles será o meu?”

Adolfo Ernesto

Ilustração: desenho de George Grosz (1893-1959)

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