quinta-feira, dezembro 06, 2007

Quando a pedofilia ainda gatinhava


A Grã-Bretanha, paradigma das liberdades públicas? Parece que não – a começar pela mãe de todas as liberdades, que é a de expressão. O falecido cineasta brasileiro Alberto Cavalcanti revelou nas suas memórias (ainda inéditas, mas agora tornadas parcialmente públicas) que só uma viagem precipitada para o México livrou Graham Greene da prisão. Por delito de opinião na “livre Inglaterra” de 1938. Nem a reputação que já tinha como um dos mais célebres escritores britânicos o livrou da ira justiceira dos tribunais do seu país. Tudo por causa de um parágrafo contido numa crítica de cinema que subscreveu na revista londrina Night and Day.
Greene, apaixonado espectador de cinema, foi ver um filme protagonizado por Shirley Temple – a menina-prodígio daquela época em Hollywood – e não gostou. O filme era Wee Willie Winkie, uma fita atípica de John Ford, baseada num conto de Kipling. Shirley, com os seus caracóis dourados, irritou o escritor, que a julgou nestes termos: “Os seus admiradores – homens de meia idade e clérigos – reagem à sua coqueteria subtil, à visão do seu bem torneado e desejável corpo...”
O problema é que Shirley Temple tinha apenas nove anos quando esta crítica foi publicada, a 28 de Novembro de 1937 – fez agora 60 anos. E embora a pedofilia estivesse então muito longe de fazer manchetes destinadas a traçar novas fronteiras de moralidade pública, a 20th Century Fox – o estúdio que produziu o filme – moveu uma queixa-crime contra o autor. A revista era editada em Inglaterra, o filme era americano – e Shirley nunca deve ter lido aquelas linhas. Mesmo assim, a queixa seguiu o seu curso. Com resultados desastrosos para a liberdade de imprensa: o tribunal considerou-a procedente, o crítico e os proprietários da revista foram condenados a pagar uma pesada indemnização compensatória.
Greene viria a mencionar este episódio muitos anos depois, no segundo volume da sua autobiografia, Caminhos de Evasão (1980). “Esta difamação é, na verdade, uma ofensa muito grave”, concluiu Lord Hewart, o juiz que presidiu ao julgamento. A Night and Day cessou a publicação (apesar de contar com colaboradores tão prestigiados como Herbert Read e Evelyn Waugh), Shirley Temple recebeu duas mil libras e o estúdio milionário embolsou 1500. Greene ficou a partir daí com ficha na Scotland Yard. E, segundo os apontamentos de Cavalcanti (agora revelados pelo jornalista Andrew Johnson no Independent), só escapou da prisão preventiva por ter sido avisado in extremis a deixar o país: partiu para o México a 29 de Janeiro de 1938 e só regressou em Maio. O julgamento decorreu a 22 de Março.


Esta partida apressada acabou por ser decisiva na vida de Greene. Foi no México das grandes perseguições religiosas que este católico heterodoxo começou a escrever O Poder e a Glória, a primeira das suas obras-primas sobre a condição humana atormentada pela culpa num mundo onde as barreiras morais estão cada vez mais diluídas. “É muito mais difícil curar o espírito do que o corpo”, dizia uma das personagens de outro dos seus melhores romances, Um Caso Arrumado.
Escritas entre o início da década de 30 e o início dos anos 40, sobretudo nas páginas da Spectator, as críticas de cinema de Greene – reunidas em volume após a sua morte, em 1991, aos 87 anos – sobreviveram ao contexto em que surgiram mais pela forma do que pelo conteúdo. The Graham Greene Film Reader (1993) revela-nos uma escrita elegante e acutilante, mas que por vezes cede à tentação da arrogância. Ao relê-las, quatro décadas depois, ele próprio encontrou nelas “muitos preconceitos que a saudade já modificou”. Exemplos? Greta Garbo era comparada a uma “égua árabe”, os filmes de Hitchcock “não levavam a nada” e o glorioso technicolor chegava a ser acusado de “destruir os rostos femininos”.
Este tom trouxe-lhe dissabores de vária ordem. Um dia, ao abrir uma carta, encontrou um pedaço de excremento. “Sempre me pareceu tratar-se de trampa aristocrata”, ironizou o escritor na sua autobiografia. Tempos antes, “havia troçado cruelmente de um certo marquês francês, autor de um documentário em que desempenhava um papel heróico...” Afinal, “ninguém possui um passado transparente” – palavras do próprio Greene, no romance O Nosso Agente em Havana. Um dos mais lúcidos epitáfios que se poderá escrever de alguém. Aposto que Shirley Temple (hoje com 79 anos) seria a primeira a concordar.

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