segunda-feira, dezembro 24, 2007

Cadernos de Filosofia Política de Adolfo Ernesto (XII)



O espírito natalício


O pior aconteceu na loja onde estavam a vender caviar Beluga a 410 mocas. Houve assim um tropel de cavalos, com resfolegar e tudo, aquilo a que o comendador Joe chamaria um utle stampede da CVM, mas que envolvia cotovelos, golpes baixos e empurrões mais ou menos subtis. Caí, pisaram-me três costelas e partiram-me os óculos.
Volto um pouco atrás: não tinha nada a ver com o Beluga, mas andava à cata de um presente de menos de cinco euros (tenho um orçamento catita desde que ganhei umas massas a escrever crónicas aqui no corta-fitas) para oferecer à minha nova namorada, a Clotilde, que é cabeleireira. E bastante boa. Pensei em comprar-lhe um enfeite de cabelo, mas lembrei-me a tempo de que ela é cabeleireira... Teria sido ensinar o padre nosso ao cura... Depois, sem ideias, andava a passear no centro comercial, no meio de uma multidão desenfreada, quando transitei ao largo da loja dos belugas...
De súbito, sem aviso, houve alguém que gritou "vende-se a última beluga" e a multidão entrou numa espécie de transe, parecia correr-lhe na espinha uma voltagem eléctrica. E foi isso que, enquanto o diabo esfrega o olho, lançou a tal cavalgada, ou boiada, ou lá o que foi; parecia uma enxurrada humana, como se tivessem aberto os portões do campo pequeno para deixar sair os touros e as pessoas começassem a fugir. Mas era para dentro.
Um homem gritava que dava 500 euros, outro enfiou-lhe um murro, e uma velhinha, com ar de tia, guinchava como se a estivessem a apalpar nos finalmentes. Foi horrível, cento e cinquenta pessoas histéricas precipitaram-se para a loja onde estavam a vender o caviar Beluga e fui atropelado. A caixinha, coitada, levitava um metro acima de dezenas de mãos que se erguiam, vorazes. Depois, tombou, com um som de lata, que deixou todas as pessoas hipnotizadas.
O resto da luta já não vi porque os meus óculos jaziam no chão, falecidos e estilhaçados.
Nem deu para perceber quem tinha ficado com a última caixinha. Foi aliás o primeiro rumor de que começavam a esgotar os produtos de luxo. E aquilo iniciou o pânico no centro comercial, onde se acotovelavam dezenas de milhares de consumidores, naquelas frenéticas e derradeiras horas das compras.
O pânico de consumidores rapidamente se propagou à loja de vinhos raros e à ourivesaria ao lado. De súbito, corriam pessoas aos gritos (como se tivesse estalado um incêndio) sobre a escassez de Laffite 31; "Já só resta uma garrafa", dizia um homem de braços no ar, com ar desvairado. "Compro, compro", ordenava um empresário, que engolira pelo menos meio charuto.
Eu tinha os óculos tão partidos, que estava a ver tudo muito fragmentado e até desfocado.
Nisto, houve uma correnteza da classe média, que vinha em sentido contrário, vociferando contra a falta iminente de produtos desta classe menos endinheirada. "Esgotaram as canecas de louça com frases brejeiras", gritava uma mulher, visivelmente alarmada; "não há mais pares de meias para oferecer", dizia outra, olhos muito abertos.
Vira antes sinais de uma verdadeira crise capitalista, mas nunca assistira a um alvoroço de consumidores. Sei que, na véspera, certos banqueiros entraram em pânico ali perto do Marquês. Foram vistos alguns, aos gritos, porque se estava a derreter todo o seu dinheiro dentro da caixa-forte.
Compreendo os banqueiros. Isto de derreter dinheiro é coisa séria.
Também compreendo os terrores dos líderes da oposição. Foi avistado um, desvairado, com choque pós-traumático e martelo pneumático na mão, a gritar que ia demolir o estado em seis meses e partidarizar o que sobrasse. O stress natalício foi excessivo, pois não é suposto dizer-se mal de alguém. Para mais, quando um governo faz tudo aquilo que a oposição prometeu, não há mesmo solução. Vivemos em tempos estranhos: a esquerda e a direita estão fundidas numa só entidade, tal como o meu cérebro. Desaparecem as referências. O governo é a única oposição a si próprio. E os ricos agem como os ricos, enquanto os pobres, por inveja ou tontice, só sabem imitar.
Mas voltemos ao caso. Fui arrastado pela correnteza da classe média, entre cotoveladas, murros e calduços; lutei com um homem disfarçado de pai natal que me tentou passar uma rasteira; passei por várias lojas de telemóveis fashion, jaguares e roupa de marca, onde iguais tumultos estavam em progresso. Ao fundo, aproximava-se a polícia de choque, que começou a distribuir valentes bastonadas. Mas o mais horrível foi quando a multidão enfurecida começou a lançar contra os polícias frascos de perfume Chanel, à maneira de cocktails molotov. Parecia uma final porto-benfica ou um arraial de porrada dos santos populares. Ficou a devastação de belos presentes de Natal destruídos, todos dispendiosos, e as montras sistematicamente partidas, tal como os meus óculos.
Quando dei por mim, tinham-me roubado os cinco euros, certamente alguém se aproveitara durante os apertões. Fiquei sem dinheiro para comprar um presente para a Clotilde. Ainda pensei em levar alguns cacos do rescaldo dos incidentes, mas estava tudo em pedaços.
Pensei, pensei... E decidi oferecer à minha Clotilde um beijo daqueles e, depois, desfazer-lhe o penteado numas cambalhotas, enquanto lhe desejo um bom natal...

Adolfo Ernesto


Este texto inspirou-se numa excelente crónica, essa séria, de Eduardo Pitta, que pode e deve ser lida aqui

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