segunda-feira, dezembro 17, 2007

Cadernos de Filosofia Política de Adolfo Ernesto (XI)



O mau jornalismo


Ia a passar pelo Marquês, quando vi o Naves, de chapéu e gravata. Além de gordo, o homem parecia mesmo irritado. Aproximei-me, um pouco a medo, não fosse ele ter uma fúria. Só depois de perceber que já não ia reagir mal à minha presença é que lhe perguntei o que tinha.
"Sabes lá, Adolfo Ernesto! Estou farto!"
Quando o meu amigo diz estas coisas, o melhor é não insistir. No máximo, esperar que ele explique.
"Fui acusado de pensamento único pelo pensamento pré-fabricado", explicou.
"E o que é isso?"
Contou-me que tinha estado na cimeira EU-África e, depois, na assinatura do Tratado de Lisboa, a fazer a cobertura jornalística para um conhecido diário.
"Que giro", disse eu, "também estive no Tratado de Lisboa, a servir à mesa, no banquete. Até tive uma conversa engraçada com um poderoso deputado. Isso foi antes de aparecer a brigada da ASAE, que mandou fechar tudo, porque não estava de acordo com os padrões de uma directiva comunitária. Levaram as travessas e ninguém comeu".
"Não sabia disso..."
"A imprensa anda distraída e não conta estas coisas..."
De repente, o meu amigo explodiu de irritação:
"Também tu, bruto!"
Só então explicou o problema: estava aborrecido com o que tem saído nos blogues sobre o trabalho da comunicação social nas questões europeias. Que ninguém explica o tratado, que os jornalistas são todos propagandistas.
"Até no Corta-Fitas me chamaram propagandista. Mas há uma data de blogues onde dizem abertamente que ninguém explica o tratado. Ora, explicar é o que eu tento fazer. Aquilo é muito complicado. Se escreves comprido, ninguém lê. Se escreves curto, não explicas nada. Mas como me limitei a contar o que vi nas cimeiras, sem opinar, vá de levar bordoada. Estas não foram as cimeiras do porreiro, pá, mas as cimeiras da porrada, pá. Vê por exemplo os do Bloco de Esquerda, como miguel portas . Ninguém explicou o tratado, afirma ele. Mas bastava ter lido o Diário de Notícias, o Público, o Correio da Manhã, o JN, a Visão ou o Expresso, entre outros. Eu, entre outros, ando há meses a explicar este tratado, e antes expliquei a Constituição, ouviste, Adolfo Ernesto?"
O Naves estava no meio do Marquês, a gritar a plenos pulmões. Apesar do trânsito, eu estava a ouvi-lo bem.
"Houve um blogue, de Miguel Vale de Almeida, segundo o qual a comunicação social estrangeira é que tinha os títulos correctos. Que a nossa estava toda errada. Não resiste a cinco minutos de análise. Se olhares com atenção, nós escrevemos as mesmas coisas que os nossos colegas espanhóis, franceses ou ingleses. Com uma excepção, na cimeira EU-África ninguém viu o Mugabe. Mas os ingleses só falavam no Mugabe".
"Uns hooligans, os ingleses..."
"Os que criticam os jornalistas são muitas vezes políticos e, portanto, têm uma agenda política. Se aquilo que os jornais dizem não coincide com aquilo que eles querem que os jornais digam, então, os jornalistas são propagandistas. Em vez do pensamento único é a opinião pré-fabricada. Quando alguém tem a nossa opinião, é um excelente analista. Quando se limita a contar o que viu, é um propagandista. Esta é a melhor maneira de criticar o jornalismo. Excluído este, ficam apenas as explicações parciais da realidade".
"Eu às vezes também sinto problemas com parcelas da realidade", afirmei, sagazmente. "É como que um ardor no estômago".
A minha longa experiência de acalmar feras (cheguei a trabalhar num circo) resultou. O Naves acalmou e até parecia um cordeirinho. Ele estava satisfeito com a minha afirmação convincente. Escondi-lhe que, na qualidade de cidadão, adoro ideias pré-fabricadas. Com um cérebro fundido, como o meu, quero é a papinha toda feita, incluindo opiniões fast-food que possa ruminar no próximo jantar do Corta-Fitas.
"Ò amigão, faz-me um favor!", pedi eu, já na despedida.
"Se puder..."
"Isto dava uma boa crónica. Importas-te de pôr lá no blogue o meu textinho sobre esta conversa? Eu não posso, porque tenho a net toda arrebentada"
"Não me importo assim muito...".
Passei-lhe o papel para a mão, para ele copiar. Acenei ao Naves e fui fazer as minhas compras de Natal.

Adolfo Ernesto

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