O binóculo de Mário Prata
A Leonor Barros fez-me este desafio no excelente blogue Geração Rasca. Repto aceite: passo a falar de uma crónica de que gostei muito.
Há quem espreite o mundo por um microscópio. Há quem prefira um telescópio. E houve aquele fotógrafo interpretado por James Stewart no filme de Alfred Hitchcock que observava a vizinhança pela tele-objectiva da sua máquina. Porque não ver o que se passa à nossa volta com um vulgaríssimo binóculo? Esta é a premissa aparentemente banal de Binóculo, uma deliciosa crónica-quase-conto de Mário Prata, inserida na colectânea Boa Companhia: Crónicas, editada pela Companhia das Letras (São Paulo, 2005).
Escrita na primeira pessoa, como mandam as boas regras quando se pretende estabelecer um clima de intimidade com o leitor, esta crónica mostra-nos bem a destreza e a plasticidade da língua portuguesa quando é usada no outro lado do Atlântico: “Claro que quem dá um binóculo para uma pessoa como eu, solteiro e rodeado de prédios e janelas tentadoras e indiscretas, tá mais a fim é de me ver procurando mulher pelada. Todo mundo sabe que a única finalidade do binóculo é o peito nu da vizinha. Foi inventado em 1645 com essa primordial finalidade.”
A vida do cronista, tal como a do fotógrafo de Hitchcock, não voltou a ser a mesma. “O que seria daquela janela sem o binóculo?” Somaram-se surpresas: a empregada do oitavo andar do prédio da frente, por exemplo, “além da falta de um canino, tem um joanete descomunal”. Ao contrário do “felicíssimo casal gay da direita, 3º andar”, a vizinha de cima “tem sistema nervoso, como diria a minha empregada”: o cronista surpreende-se por haver “ainda algum prato na casa dela”. E há “a loiraça do décimo primeiro”, de aliança no dedo, em parceria acelerada “com o desempregado do quinto, também de aliança”. O dono do binóculo acredita que não tardará a acontecer alguma coisa: “Mulher, quando ri muito das besteiras dos homens, está a um passo de perguntar o horóscopo, o que, como você sabe, é propor eminente e iminente sacanagem.”
Tudo vai bem até que descobre o adolescente do 11º, da direita, com “uma fantástica luneta” virada para a sua própria janela: “Eu aqui escrevendo e o garoto lá, me olhando. Vai virar cronista, quando crescer.”
Mário Prata, de 61 anos, é romancista e autor de argumentos para televisão, teatro e cinema. Durante mais de uma década, assinou uma crónica no diário O Estado de São Paulo. Releio Binóculo e interrogo-me: quantos escritores portugueses seriam hoje capazes de escrever um texto destes, com tanta graça, desenvoltura e perfeito domínio do idioma?
Escrita na primeira pessoa, como mandam as boas regras quando se pretende estabelecer um clima de intimidade com o leitor, esta crónica mostra-nos bem a destreza e a plasticidade da língua portuguesa quando é usada no outro lado do Atlântico: “Claro que quem dá um binóculo para uma pessoa como eu, solteiro e rodeado de prédios e janelas tentadoras e indiscretas, tá mais a fim é de me ver procurando mulher pelada. Todo mundo sabe que a única finalidade do binóculo é o peito nu da vizinha. Foi inventado em 1645 com essa primordial finalidade.”
A vida do cronista, tal como a do fotógrafo de Hitchcock, não voltou a ser a mesma. “O que seria daquela janela sem o binóculo?” Somaram-se surpresas: a empregada do oitavo andar do prédio da frente, por exemplo, “além da falta de um canino, tem um joanete descomunal”. Ao contrário do “felicíssimo casal gay da direita, 3º andar”, a vizinha de cima “tem sistema nervoso, como diria a minha empregada”: o cronista surpreende-se por haver “ainda algum prato na casa dela”. E há “a loiraça do décimo primeiro”, de aliança no dedo, em parceria acelerada “com o desempregado do quinto, também de aliança”. O dono do binóculo acredita que não tardará a acontecer alguma coisa: “Mulher, quando ri muito das besteiras dos homens, está a um passo de perguntar o horóscopo, o que, como você sabe, é propor eminente e iminente sacanagem.”
Tudo vai bem até que descobre o adolescente do 11º, da direita, com “uma fantástica luneta” virada para a sua própria janela: “Eu aqui escrevendo e o garoto lá, me olhando. Vai virar cronista, quando crescer.”
Mário Prata, de 61 anos, é romancista e autor de argumentos para televisão, teatro e cinema. Durante mais de uma década, assinou uma crónica no diário O Estado de São Paulo. Releio Binóculo e interrogo-me: quantos escritores portugueses seriam hoje capazes de escrever um texto destes, com tanta graça, desenvoltura e perfeito domínio do idioma?
E passo agora a bola ao Luís Naves, meu parceiro de blogue. Para que também ele nos fale de uma das suas crónicas favoritas.
Etiquetas: Crónicas