Cadernos de Filosofia Política de Adolfo Ernesto (VIII)
O rapto
O Pedro Correia lançou aqui um rapto ao Luís Naves, para ele dizer aqui qual era a sua crónica favorita. Encontrei o Luís na rua, vinha perturbado, com aquela pança enorme. Falou-me do rapto:
“Sei lá qual é a minha crónica favorita? É o mesmo que me perguntarem qual é o meu livro favorito”, disse ele.
Tentei confortá-lo:
“Para mim, era fácil responder a essa pergunta. Como só li cerca de 15 livros...”
“Talvez tu possas escrever a prosa...”
Ficou logo ali combinado que seria eu a explicar aos leitores isto da arte da crónica.
O melhor cronista que conheço é o Alcibíades, um gigante (muito parecido com o Jimmy Stewart) que está a escrever a crónica desde país tristonho e melancólico, amargurado e sorumbático. Infelizmente, a obra dele ainda não está publicada. O meu amigo ocupa o seu tempo a recortar velhos jornais, na cave onde mora, que está atafulhada de pedaços de textos que ele depois cola e anota, para integrar na sua vasta obra.
(O Naves diz que ele se parece com o Joe Gould “tal como foi descrito pelo genial cronista Joseph Mitchell, na sua obra ‘O Segredo de Joe Gould’”. limito-me a reproduzir o que o Naves disse).
Mas regressemos ao rapto, como se fôssemos Miss Marple a perseguir o professor Moriarty.
O Alcibíades é homem de poucas falas. Quando lhe perguntei o que devia explicar sobre isto da crónica, ele fez um ar pensativo, severo, absorto, cogitabundo e até vagamente sorumbático.
“Há dez regras: sendo a crónica um género literário, é fundamental elevar a hipérbole e desenvolver a substância”.
Fiquei extasiado.
“E as outras nove regras?”, perguntei.
“As outras sete são o prolongamento do ego e a faculdade opinativa, numa perspectiva de realismo brutal”.
“E o que usas para observar a realidade?”
“Prefiro a teleobjectiva aos binóculos”.
O Alcibíades parecia um bonzo imerso em pensamentos cavados, profundos, abissais e desmesurados. Sem dúvida, sorumbáticos.
“Isso torna difícil compreender a verdadeira arte da crónica”, exclamei, verdadeiramente surpreendido, a tentar quebrar aquele solilóquio.
“Dizes bem, Adolfo Ernesto. Uma bela crónica é como uma mulher bela. Nós, homens, gostamos delas redondinhas e esfuziantes”. O Alcibíades perdera o seu ar sorumbático, “Foi por isso que me tornei cronista. A realidade numa crónica é como a curvatura de uma cintura feminina, a redondez de um ombro feminino, a hesitação do artista perante um adjectivo feminino, ou até de um sorriso feminino, enfim, numa palavra, a imprecisão indefinida, mas ao mesmo tempo física e absolutamente concreta”.
“E qual é a tua crónica favorita?”
“Gostei de uma crónica do Art Buchwald, que ele escreveu pouco antes de morrer: o cronista estava num aeroporto, onde esperava um avião para o céu, e transformava a sua crónica numa descrição da confusão dos aeroportos na época de Natal. Um hino à vida e coisa de mestre, com humor auto-irónico que ainda hoje me faz rir e pensar”.
“Então, Alcibíades, a crónica não tem de tratar sempre do efémero?”
“Pode ser fútil, sim, mas anda tão confundida com a opinião editorial que se banalizou, como se tornou banal a espuma na superfície das águas. E, apesar de tudo, pode ir até aos abismos da alma. Há quem consiga”.
Foi mais ou menos assim que ele falou. Confesso que não percebi metade, mas não sou cronista. Limito-me a andar pelo mundo, a relatar o que vejo, aquilo que imagino e o que poderia ser. É esta a minha visão, distorcida pelo meu cérebro com duas metades coladas uma à outra.
Despedi-me do Alcibíades e deixei-o com os seus recortes de jornais, sorumbático, a fragmentar o mundo. "Ah! E não te esqueças de um bocadinho de poesia, que é o mais importante", rematou ainda..."E como isto é uma corrente, passa a bola ao doce poeta lírico".
Adolfo Ernesto
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