sábado, outubro 20, 2007

Cinema Nostalgia (15)


O espírito e a carne
De que me lembro quando me lembro de Deborah Kerr? De Karen Holmes, a esposa adúltera que troca um capitão por um sargento numa praia do Havai. De Terry McCay, que se apaixona perdidamente por Cary Grant nesse inesquecível melodrama que é O Grande Amor da Minha Vida. Da freira que partilha uma ilha quase deserta com o bebedolas Robert Mitchum numa deliciosa comédia de John Huston, justamente intitulada O Espírito e a Carne na versão portuguesa. Recordo-a em bastantes outros filmes – de Júlio César a Vidas Separadas. Mas lembro-a sobretudo noutro papel de freira, para o qual parecia predestinada, numa das mais admiráveis obras-primas do cinema: Quando os Sinos Dobram, da dupla Michael Powell-Emric Pressburger. Filmada num fabuloso technicolor, com cores cada vez mais quentes à medida que a acção progride, ela era muito mais carne que espírito, apesar das vestes religiosas. Aprendi definitivamente com esse filme que o hábito não faz o monge. O cinema, está visto, também serve para nos iluminar por dentro.
Havia mais inquietação por detrás da força tranquila do olhar azul de Deborah Kerr – uma inquietação que só cineastas de muito talento souberam desvendar. E ela trabalhou com vários – de Leo McCarey a Elia Kazan, passando por Joseph L. Mankiewicz. Faltou-lhe talvez só filmar com Alfred Hitchcock, que tinha uma notória inclinação por louras de olhar gélido, talvez frígidas sem remissão, talvez vulcões ocultos por uma ilusória camada de gelo. Na década de 50, que foi a década de ouro de Deborah, Hitch andava encantado com outras louras, chamadas Grace Kelly ou Kim Novak, e não fez caso desta compatriota de voz de veludo e perfeita dicção londrina. Azar dele, infortúnio dela: se tivessem filmado juntos, estaríamos hoje certamente a venerar em todas as cinematecas do planeta essa película que afinal nunca existiu.
Deborah Kerr deixou de ser carne, tornou-se espírito: acaba de morrer aos 86 anos. Apenas com um Óscar honorário no currículo: espantosamente, Hollywood nunca a premiou no auge da carreira. Fala-se tanto em injustiça a propósito dos Óscares: esta foi uma das mais evidentes.
Disse que deixou de ser carne? Exagero meu. Basta revermos uma vez e outra aquela cena antológica do mar a afagar-lhe as pernas, a humedecer-lhe o corpo enquanto Burt Lancaster a estreita nos braços com a urgência do primeiro ou do último beijo trocado entre dois seres errantes nos confins do universo. É esta a grande força do cinema: permite sempre a ressurreição da carne, projectada no infinito. Até à eternidade.
Publicado hoje no DN

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