sábado, outubro 20, 2007

A Cimeira de Lisboa



Poeira
A próxima década será europeia. Escrito assim, isto quase parece um disparate. Afinal, os líderes europeus estiveram uma noite a discutir um deputado e a conclusão do Tratado de Lisboa foi aproveitada pelo governo português para uma operação de propaganda. Abrimos a televisão e vemos os políticos a fazerem comentários fantasiosos sobre o que verdadeiramente se passou. Em relação à Europa, só parece haver duas opiniões possíveis: ser contra, pois aquilo tem ar irrelevante; ou ser contra, pois aquilo tem ar perigoso.
Acho que nos estão a deitar poeira aos olhos e que o debate, em Portugal, não existe.
A cimeira de Lisboa foi, de facto, histórica, pois termina um ciclo que durou uma década. Após a conclusão do mercado único, da moeda única e do alargamento, a UE definiu uma nova organização interna, não muito diferente da anterior, mas que avança um pouco mais na direcção demográfica. O poder relativo de cada Estado desloca-se nesse sentido, mas sem atingir a proporcionalidade. Mantém-se o carácter de grupo de Estados, mas com maior peso dos grandes, acomodando-se desta forma o anterior alargamento.

Liderança
A próxima década será europeia. Estamos num novo ciclo de liderança. A Cimeira de Lisboa demonstrou que o actual grupo dirigente, com destaque para Angela Merkel e Nicolas Sarkozy, é muito mais pragmático e positivo do que os anteriores. A ratificação do Tratado de Lisboa será rápida, numa técnica de "choque e pavor", que não dará às oposições tempo para pensar. Dentro de um ano, o tratado entra em vigor, deixando as mãos livres para um novo desígnio: as reformas económicas.
O mercado único é indiscutível, o euro é até demasiado estável, o alargamento é um êxito. Cada um destes projectos gerou grande ansiedade e muitos observadores fizeram previsões de catástrofe iminente. Facto: as previsões falharam, os projectos são incontestáveis.

Qual é a parte que não querem?
A próxima década será europeia. Não percebo, sinceramente, os que não querem este tratado ou outro qualquer. Qual é a parte da União que não querem? O mercado único, o euro, o alargamento? Se quiserem as três, precisam do tratado ou de um outro qualquer parecido com este.
Também não consigo entender os que queriam mais ambição. Esquecem que as populações rejeitaram o Tratado Constitucional. É aborrecido que tenham sido os franceses e holandeses a decidirem por mim, mas este é o compromisso entre o edifício progredir um pouco mais e ser respeitada alguma da vontade popular. A solução não foi democrática, concordo, sob nenhum ponto de vista. Mas, neste caso, os primeiros-ministros que negociaram devem ser punidos pelos eleitores, o que aliás poderá acontecer na Dinamarca, Holanda e Reino Unido. Isso, sim, será a democracia em acção.

A uma voz
A próxima década será europeia, mas temo que este texto não esteja a ser inteiramente claro. Há imenso ruído de análises fáceis e rápidas. Também há brincadeiras, muitas delas úteis, pois tentam desmistificar a propaganda. Eu próprio publiquei aqui uma pequena sátira do meu amigo Adolfo Ernesto sobre a cimeira. E, a seguir ao meu post gigantesco, a Cristina publica uma deliciosa marcha.
Mas não podemos esquecer que este é o resultado de seis anos de negociações. A alternativa será começar tudo de novo, embora os países não possam esperar, de tal forma as partes da tapeçaria estão interligadas.
Reparem num pormenor: em negociações onde os europeus conseguem chegar a uma só voz, tornam-se numa superpotência. Veja-se a questão do clima ou do comércio internacional, ou do FMI. Claro que a diplomacia lituana não tem muito a ver com a portuguesa, e os interesses comuns destes dois países são mínimos. O espaço comum é ainda menor quando pensamos a 27. E claro que o músculo militar europeu continua a ser limitado, embora nos esqueçamos facilmente da sua utilidade em diversas operações (Congo, Líbano, Bósnia, Kosovo, Afeganistão). Para muitos analistas, isto não conta, porque a Europa não consegue agir sozinha em conflitos importantes. Eles esquecem que os EUA têm dez porta-aviões, e que esse é o custo de manutenção de uma hiperpotência, algo que a Europa não deseja ser.

Bizarra
A próxima década será europeia, mas continua a ser fácil ridicularizar o projecto europeu. Ele parece por vezes ridículo: os líderes estiveram uma noite a discutir um deputado e a solução lembrou um regateio na feira do relógio.
Mas o facto é que esta coisa aberrante, feita de cima para baixo, que as opiniões públicas continuam a desconhecer e desprezar, vai avançando. E há uma razão para isso, uma razão simples: ou os países europeus se juntam sob este tecto bizarro e ganham poder falando a uma voz ou serão todos individualmente irrelevantes. Sem negociação permanente, haverá dentro da Europa hostilidade permanente.

Nota: perdoem os leitores a dimensão excessiva do post, mas é difícil escrever sobre estes temas e a necessidade das mensagens fugazes dá vantagem às impressões superficiais

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