Cadernos de filosofia política de Adolfo Ernesto (5)
Uma visita ao oceanário
O Vladimir é um russo depressivo e estava encostado, com ar lastimável, a uma das paredes do Oceanário. Gabardina cor de creme, óculos escuros. Viu-me, saudou-me sem spleen. De repente, muito pálido, desatou a vomitar na branca calçada portuguesa.
“Adolfo Ernesto, não suporto o cheiro a peixe”, disse o Vladimir.
“Pensei que tivesses estômago forte”, afirmei, numa alusão a uma carreira brilhante na espionagem internacional. Depois, perguntei-lhe o que estava ali a fazer e que era aquele ajuntamento.
(Ainda não expliquei que deambulava pela zona quando me deparei com forte aparato policial, algo que desperta sempre a minha curiosidade).
“O presidente sovié.. quero dizer, russo... está de visita e quis ver Eusébio e Amália”, explicou o Vladimir, num tom conspirativo. “Mas não te posso dizer mais do que isto”.
Passámos muita coisa juntos, eu e o Vladimir, quando estivemos uma temporada no sector da construção civil. Foi o suficiente para perceber que com aquele tom de voz não se brinca. Entretanto transformado num agente com anos de tarimba, ele é o novo chefe das operações do ex-KGB na zona oriental de Lisboa, com especial atenção aos bairros de Chelas e Madragoa, em cujos bas-fond circulam numerosos segredos internacionais vendidos a peso de ouro.
(Outro esquecimento da minha parte: Vladimir é nome de guerra; ele chama-se, de facto, José, como o grande José Estaline; após uma conturbada juventude, marcada por sexo, loucura e droga, e a tal passagem pela construção civil, teve uma meteórica ascensão na espionagem, com destaque para a descoberta de todos os segredos nucleares portugueses).
“Mas porquê o oceanário, Zé?”, perguntei, ingenuamente.
Vladimir teve um esgar de alarme, talvez escandalizado com a minha pergunta.
“Já expliquei, Adolfo Ernesto. O líder pediu para ver Eusébio e Amália e ouvi dizer que estavam os dois aqui”.
Nisto, o presidente saiu do oceanário, visivelmente irritado. Desceu a rampa, direito ao bravo espião e passou-lhe logo ali um raspanete.
“Aquilo, lá dentro, só tem tubarões, um tipo de peixe que conheço bem. Quero ver Eusébio e Amália! Investigue! Entretanto, vou ali praticar karaté com aqueles transeuntes portugueses”.
O Vladimir manteve enorme frieza e presença de espírito. Só mais tarde começou a chorar no meu ombro:
“Vão pôr Polónio 210 no meu chá! É muito amargo”
“O Polónio 210 é amargo?”
“Não. Amargo é o meu destino. Nisso, somos muito parecidos, os portugueses e os russos, o destino amargo, a fatalidade”.
Foi então que me ocorreu que talvez houvesse ali um equívoco simples: o presidente quisera ver Eusébio, o jogador de futebol, e Amália, a cantora de fado. Não quisera ver as duas lontras do oceanário com aquele nome.
“É uma mania que têm aqui, baptizar os animais com nomes famosos. As barracudas, por exemplo, têm nomes de ministros”, expliquei.
De súbito, o Vladimir caíra em si. Tratava-se de um gigantesco erro de análise.
“Horror, horror”, gritou o agente secreto, enquanto desatava a correr atrás do seu líder. “Serei chamado a Moscovo. E, depois, enviam-me para a Sibéria!”
Ao vê-lo partir para sempre, pensei, sem alarme: há pessoas que não mudam.
Adolfo Ernesto
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