"A verdade é que vivíamos bem. Conseguíamos estar incontactáveis e bem. Hoje isso parece-me um absurdo. Como é que estávamos bem sem ninguém saber de nós? Como é que passávamos horas longe dos nossos filhos, às vezes sem telefones fixos à mão? E, pior, sem medos? E sem estar a presumir infidelidades? Acreditando piamente no livre arbítrio da vida, nas pessoas que se atrasam, no nada que é o que mais das vezes acontece? Como é que dávamos aos outros um agora facilmente alienável direito à autonomia (poder estar sozinho)? (...)
Que coisa esquisita - agora ao escrever isto sinto-me uma espécie de neandertal do passado recente, como se tivesse havido uma linha contínua dos meus avós até mim, abruptamente quebrada pelo telemóvel, pelo google e pela Internet. Como se o mundo estivesse dividido entre o depois da electricidade e o antes da Internet. (...)"
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Nem de propósito, este texto da Ana Sá Lopes. Por uma série de razões fiquei sem telemóvel por quase dois dias. De inicío, como com qualquer vício, sente-se a falta, uma irreprimível vontade de comunicar, uma espécie de angústia por não poder ser contactada, o receio de tragédias, a ansiedade de não estar "em linha", em suma, um desassossego. Com o passar das horas, depois de passada a zona da irresponsabilidade e ultrapassado o tempo de carência, começa a aproveitar-se o silêncio e a sensação de alguma liberdade.
Hoje, reconciliada com o (novo) telemóvel, interrogo-me perante um tão vasto menu: mais tarefas, novas funções, definições adicionais. Não há estado da memória que aguente.