A memória de um guarda-redes
É verdade. Fiquei triste com a notícia e até nem sou do Benfica, nem percebo muito de futebol. Mas o Bento, de bigodes grandes e cabeleira farta, faz parte da memória. Do Europeu de 1984, do disparate de Saltillo, do mau feitio, das defesas impensáveis para um homem pequeno. Do tamanho ao génio de Damas, o guarda-redes do Benfica tinha tudo contra si. E, no entanto, durante dez anos, ninguém discutiu a titularidade na Luz e na selecção.
Capitão de equipa, cara de duro. Manuel Bento a atirar-se ao chão, a segurar bolas, a berrar para os defesas, a aguentar como um leão a baliza. Fosse pelo Benfica, fosse por Portugal, ele era, nos anos setenta e oitenta, a encarnação perfeita do jogador da bola. Ou era para a miudagem que comprava cromos e cadernetas na mercearia do André.
Os mesmos que, por falta de dinheiro, colavam Bentos, Chalanas e Nenés com milho cozido e água à espera de ganhar uma bola de futebol. Para estes miúdos, os que sonhavam com um ‘catchu’ para o lugar da bola de trapos e jornais, o Bento - feio, de bigode - era um mito.
Um deus à medida da época. Resistente e combativo, feito para durar no coração dos adeptos. Nos do Benfica, nos da selecção. Porque, no seu jeito, o guarda-redes representava também o Portugal nascido da Revolução, o País que fervia protestos em pouca água. Talvez por isso se confunda o ‘herói’ da baliza lusa com o porta-voz das reivindicações salariais do Mundial de 1986.
Por mim, prefiro lembrá-lo no Europeu de 1984. Em França, quando não se dava um vintém pela selecção portuguesa. Nem os adeptos, nem os jogadores e, menos ainda, os quatro treinadores da Comissão Técnica que orientava a equipa. Nem sequer as circunstâncias. A selecção enfrentou viagens tormentosas de avião e quase se despistava a caminho da semi-final em Paris, para esse jogo fabuloso contra a França de Platini.
Um jogo e uma noite memoráveis. Pela alma, pelo esforço, pelo futebol. A equipa deu tudo e nem precisou de bandeiras nacionais na varanda. No fim, quando o árbitro apitou, a derrota custou a engolir, apesar da dignidade. A vontade de ganhar por goleada roubou a final a Portugal e a uma geração de futebolistas que merecia o prémio.
Não eram os melhores, nem os mais elegantes e habilidosos. O futebol, depois deles, produziu craques de nível mundial, o Figo e o Cristiano Ronaldo. Ainda assim, acho que mereciam aquela final. Pelo que tinham de genuíno e de portugueses, na sua tendência para aventuras acidentais.
E digo isto porque prefiro os heróis por acaso. Gosto do David que enfrenta Golias e dos que trocam as voltas ao destino. Como os jogadores de 1984, como o Bento, baixo e sem a elegância de Damas. Gosto dos homens normais que deixam saudades quando partem.
(crónica publicada no DN-Madeira)
Capitão de equipa, cara de duro. Manuel Bento a atirar-se ao chão, a segurar bolas, a berrar para os defesas, a aguentar como um leão a baliza. Fosse pelo Benfica, fosse por Portugal, ele era, nos anos setenta e oitenta, a encarnação perfeita do jogador da bola. Ou era para a miudagem que comprava cromos e cadernetas na mercearia do André.
Os mesmos que, por falta de dinheiro, colavam Bentos, Chalanas e Nenés com milho cozido e água à espera de ganhar uma bola de futebol. Para estes miúdos, os que sonhavam com um ‘catchu’ para o lugar da bola de trapos e jornais, o Bento - feio, de bigode - era um mito.
Um deus à medida da época. Resistente e combativo, feito para durar no coração dos adeptos. Nos do Benfica, nos da selecção. Porque, no seu jeito, o guarda-redes representava também o Portugal nascido da Revolução, o País que fervia protestos em pouca água. Talvez por isso se confunda o ‘herói’ da baliza lusa com o porta-voz das reivindicações salariais do Mundial de 1986.
Por mim, prefiro lembrá-lo no Europeu de 1984. Em França, quando não se dava um vintém pela selecção portuguesa. Nem os adeptos, nem os jogadores e, menos ainda, os quatro treinadores da Comissão Técnica que orientava a equipa. Nem sequer as circunstâncias. A selecção enfrentou viagens tormentosas de avião e quase se despistava a caminho da semi-final em Paris, para esse jogo fabuloso contra a França de Platini.
Um jogo e uma noite memoráveis. Pela alma, pelo esforço, pelo futebol. A equipa deu tudo e nem precisou de bandeiras nacionais na varanda. No fim, quando o árbitro apitou, a derrota custou a engolir, apesar da dignidade. A vontade de ganhar por goleada roubou a final a Portugal e a uma geração de futebolistas que merecia o prémio.
Não eram os melhores, nem os mais elegantes e habilidosos. O futebol, depois deles, produziu craques de nível mundial, o Figo e o Cristiano Ronaldo. Ainda assim, acho que mereciam aquela final. Pelo que tinham de genuíno e de portugueses, na sua tendência para aventuras acidentais.
E digo isto porque prefiro os heróis por acaso. Gosto do David que enfrenta Golias e dos que trocam as voltas ao destino. Como os jogadores de 1984, como o Bento, baixo e sem a elegância de Damas. Gosto dos homens normais que deixam saudades quando partem.
(crónica publicada no DN-Madeira)