Luta de classes
Há classes. Sempre houve. Em cada lugar, em cada canto onde há mais que um homem. Na curva da estrada da minha infância, naquela aparente democracia de escassez, cada um sabia o seu lugar. Entre quem tinha a fruta e quem a roubava, quem fugia, quem apanhava as pedras. Os proprietários e os inquilinos, as casas de muitos filhos e as casas de muitos quartos e pouca descendência. Estar de um lado ou de outro, mudava-nos a vida, o futuro, os sonhos e as esperanças. A sorte do meu nascimento subtraiu-me a um destino de costas vergadas.
Uma conjugação infinita de factores - de um bisavô ambicioso a uma mãe empreendora - colocou-me do lado dos que podiam sonhar. O que fiz depois, o que sou hoje, ficou decidido muito antes de nascer. Nesse acaso que me fez bisneta de um homem de trabalho e cálculo, que fazia dinheiro com as sobras da água da levada que administrava. E, mesmo assim, não havia ricos. Existia uma longa pirâmide de pobres. Menos pobres, pobres, mais pobres. Os que podiam sonhar e os que não sonhavam, sequer.
Eram muitos os que nem sabiam do futuro, da sua existência, da diferença entre hoje e amanhã. O tempo tinha o mesmo formato todos os dias. Manhãs, tardes, noites. Barrigas vazias, roupas com remendos, olhos num cenário de anjos e gritos de bêbedos. Os sinos na igreja dobravam, vezes sem conta, por bebés mortos e baptizados, encomendados a Deus. Retirados do mundo em caixas brancas. Cortejos grotescos de meninas vestidas de branco, segurando fitas azuis ou cor-de-rosa. Porque os anjos tinham sexo. Menina ou menino. A má sorte é cega.
Uma conjugação infinita de factores - de um bisavô ambicioso a uma mãe empreendora - colocou-me do lado dos que podiam sonhar. O que fiz depois, o que sou hoje, ficou decidido muito antes de nascer. Nesse acaso que me fez bisneta de um homem de trabalho e cálculo, que fazia dinheiro com as sobras da água da levada que administrava. E, mesmo assim, não havia ricos. Existia uma longa pirâmide de pobres. Menos pobres, pobres, mais pobres. Os que podiam sonhar e os que não sonhavam, sequer.
Eram muitos os que nem sabiam do futuro, da sua existência, da diferença entre hoje e amanhã. O tempo tinha o mesmo formato todos os dias. Manhãs, tardes, noites. Barrigas vazias, roupas com remendos, olhos num cenário de anjos e gritos de bêbedos. Os sinos na igreja dobravam, vezes sem conta, por bebés mortos e baptizados, encomendados a Deus. Retirados do mundo em caixas brancas. Cortejos grotescos de meninas vestidas de branco, segurando fitas azuis ou cor-de-rosa. Porque os anjos tinham sexo. Menina ou menino. A má sorte é cega.