sábado, fevereiro 24, 2007

Videoteca (1)


Quem sabe o mal que se esconde no coração dos homens? O Sombra sabe. E David Lynch também. A prova, caso ainda fosse necessária, é este negro, muito negro Estrada Perdida. Um filme que, se não atinge as alturas de Veludo Azul, ultrapassa em sexta velocidade os infelizes últimos dias de Laura Palmer.
O mais próximo que o realizador esteve de definir esta sua obra foi quando lhe chamou “uma fuga psicogénica”. Por um lado, diz ele, quem sofre desta doença cria na mente uma identidade totalmente nova. Por outro, tal como numa fuga em sentido musical, aqui começamos a caminhar numa direcção, evoluímos para outra totalmente diferente e regressamos enfim ao ponto de partida. Dito assim, até parece coerente. Mas, como acontecia com a esperança no inferno de Dante, os que aqui entram abandonam toda a lógica. Mergulham numa espiral em que o Tempo e o Espaço são tão lineares como uma fita de Moebius, o símbolo do infinito desafiador das topologias.
Em Estrada Perdida temos todas as obsessões de Lynch. O opressivo e constante chiaroscuro, as cortinas vermelhas, as lareiras de ominosas labaredas, a sinistra personagem inter dimensional...O Hitchcock de Vertigo está presente na dupla figura de Patrícia Arquette, mas também a Los Angeles Confidencial de James Ellroy num cenário onde - apesar dos telemóveis e das câmaras de vídeo - tudo nos situa em plenos anos cinquenta. E ainda ficamos com grande parte do film noir, e Jung, e Lewis Carrol. Mas, acima de tudo e de todos, com o próprio Lynch. Estrada Perdida é uma ruptura ontológica a ser experimentada e não explicada. Podemos ouvir alguém ao telefone e ele estar também à nossa frente, podemos ver o futuro mesmo aquele que não acontecerá. Presenciamos cenas de sexo tentadoramente animalesco e brutal e cenas de sexo aterradoramente belo, iluminando o deserto com partículas de luz. Quem é quem afinal? E quem somos nós, os espectadores dominados e encarcerados também nos nossos inconfessados segredos? Não o saberemos jamais.
Para além da fotografia arrebatadora de Peter Deming, da perturbante banda sonora de Badalamenti mas também de Lou Reed, Nine Inch Nails e This Mortal Coil, para além dos planos e das cenas nunca explicadas e que somos incapazes de entender sem recurso a hipnose regressiva, Estrada Perdida é um aviso a quem deu este realizador por arrumado. David Lynch regressou, igual a si mesmo. Que é como quem diz, muito diferente de todos os outros.
(Excerto de crítica inicialmente publicada no O Independente. Se gostarem, a Videoteca regressa no próximo sábado)

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