Memórias do Natal
Um misto de ingénuo espanto e ansiedade define a comoção com que eu na minha infância vivia a festa de Natal. Tudo começava na véspera, noite dentro, quando nós os cinco manos, lá íamos com os nossos pais, todos ao monte no velho carocha bege, bem agasalhados e aperaltados, para a missa do Galo. Ainda pequeno, era um sentimento muito especial o de entrar acordado no mistério da noite profunda e estrelada. Lisboa lá estava deserta e fria, mas calorosamente engalanada para a festa. Excepcionalmente para as solenidades natalícias íamos à Igreja de S. Pedro de Alcântara ou Santos o Velho. A ocasião era toda ela especial: a Igreja, quente e iluminada a preceito, tinha um cheiro especial, os cânticos também eram especiais, e o grande presépio ao fundo dominava o panorama. Num autêntico estado de graça eu sentia-me também especial, como Jesus que nascia...
Intimamente eu ansiava pelo fim da missa, pelos presentes e a ceia, na Avenida da Liberdade em casa dos avós, noite adentro com os tios e a primalhada toda. Era essa a primeira etapa do glorioso dia que então começava.
Além das coloridas iluminações de rua, o Natal era então também mundanamente anunciado por alguns sinais “televisivos”, que avisavam a chegada das festas. Eram os anúncios de brinquedos, chocolates e perfumes, o inevitável Natal dos Hospitais, e os magalas que logo a seguir ao telejornal mandavam saudades à família, em diferido das colónias.
Mas no Natal são os presentes que tocam profundamente as sedentas criancinhas. Lembro-me daquele Mercedes Dinky Toys, que especialmente para mim, o meu pai pintou de preto e verde para satisfazer o meu capricho de ter um Táxi “como os verdadeiros”. Houve um pequeno “transístor” (rádio a pilhas) revestido de cabedal castanho, oferecido pelo meu padrinho, o avô João, onde eu ouvi as minhas primeiras canções, o “Quando o telefone toca” e os “Parodiantes de Lisboa”. E num qualquer Natal mais próspero lembro-me de ter recebido uma enorme caixa de Mecano, um jogo de construção que fez as minhas delicias durante meses…
E depois havia o chocolate quente na Avenida, cheia de primos, sonhos e outros fritos. E havia o acordar tarde e estremunhado já em Campo d' Ourique, para com os meus irmãos acorrermos estonteados ao nosso sapatinho junto ao presépio... onde milagrosamente já constava o Menino Jesus devidamente deitado na sua manjedoura.
E ao final do dia, com uma réstia de preciosa energia, íamos ainda jantar aos meus avós paternos na Travessa do Patrocínio... para um derradeiro banho de festa, de tios e de outros tantos primos...
O dia seguinte era uma ressaca feliz. Depois, restavam ainda uns dias de férias para empenhadamente brincar com os meus irmãos e com tantos e brinquedos novos. E para numa ida à matinée, a ver um filme de Walt Disney, estrear umas meias de lã, ou uma camisola nova tricotada pela minha mãe. E por esses dias, com a minha curiosidade endiabrada, ia desventrando meticulosamente alguns dos mais fascinantes e plásticos presentes, de corda ou a pilhas, até serem depositados ao monte no grande caixote. Inúteis e abandonados.
Finalmente, depois da passagem de ano, o suspiro moribundo das festas, a vida retomava a normalidade, a rotina. Até a escola implacável, ensonada e fria recomeçar.
Ilustração 3 - Travessa do Patrocínio nº 15 em 1898 (!) daqui.
Intimamente eu ansiava pelo fim da missa, pelos presentes e a ceia, na Avenida da Liberdade em casa dos avós, noite adentro com os tios e a primalhada toda. Era essa a primeira etapa do glorioso dia que então começava.
Além das coloridas iluminações de rua, o Natal era então também mundanamente anunciado por alguns sinais “televisivos”, que avisavam a chegada das festas. Eram os anúncios de brinquedos, chocolates e perfumes, o inevitável Natal dos Hospitais, e os magalas que logo a seguir ao telejornal mandavam saudades à família, em diferido das colónias.
Mas no Natal são os presentes que tocam profundamente as sedentas criancinhas. Lembro-me daquele Mercedes Dinky Toys, que especialmente para mim, o meu pai pintou de preto e verde para satisfazer o meu capricho de ter um Táxi “como os verdadeiros”. Houve um pequeno “transístor” (rádio a pilhas) revestido de cabedal castanho, oferecido pelo meu padrinho, o avô João, onde eu ouvi as minhas primeiras canções, o “Quando o telefone toca” e os “Parodiantes de Lisboa”. E num qualquer Natal mais próspero lembro-me de ter recebido uma enorme caixa de Mecano, um jogo de construção que fez as minhas delicias durante meses…
E depois havia o chocolate quente na Avenida, cheia de primos, sonhos e outros fritos. E havia o acordar tarde e estremunhado já em Campo d' Ourique, para com os meus irmãos acorrermos estonteados ao nosso sapatinho junto ao presépio... onde milagrosamente já constava o Menino Jesus devidamente deitado na sua manjedoura.
E ao final do dia, com uma réstia de preciosa energia, íamos ainda jantar aos meus avós paternos na Travessa do Patrocínio... para um derradeiro banho de festa, de tios e de outros tantos primos...
O dia seguinte era uma ressaca feliz. Depois, restavam ainda uns dias de férias para empenhadamente brincar com os meus irmãos e com tantos e brinquedos novos. E para numa ida à matinée, a ver um filme de Walt Disney, estrear umas meias de lã, ou uma camisola nova tricotada pela minha mãe. E por esses dias, com a minha curiosidade endiabrada, ia desventrando meticulosamente alguns dos mais fascinantes e plásticos presentes, de corda ou a pilhas, até serem depositados ao monte no grande caixote. Inúteis e abandonados.
Finalmente, depois da passagem de ano, o suspiro moribundo das festas, a vida retomava a normalidade, a rotina. Até a escola implacável, ensonada e fria recomeçar.
Ilustração 3 - Travessa do Patrocínio nº 15 em 1898 (!) daqui.