sábado, dezembro 09, 2006

Jurar para sempre, na guerra e no amor

Já lhe chamei o melhor western de todos os tempos. Esta impressão reforçou-se ao rever ontem A Desaparecida no ciclo da Gulbenkian: é uma obra-prima absoluta.
Não existe melhor interpretação em cinema do que a de John Wayne como protagonista deste filme. É verdadeiramente insuperável o que o actor favorito de John Ford faz aqui com um olhar fixo, um gesto tenso, um simples esgar ou um silêncio que parece eternizar-se. A Desaparecida é um filme cheio de silêncios prolongados e magoados: Ethan Edwards (Wayne) arrasta consigo um segredo por desvendar. "A guerra já acabou há três anos. Porque não voltaste antes?", pergunta-lhe o irmão, Aaron, ao vê-lo chegar com tanto atraso. A pergunta fica sem resposta. Há imensas perguntas sem resposta neste filme.
Estamos no Texas, em 1868. Wayne combatera na guerra civil (1861-65), pelos confederados. A derrota marcou-o: jamais voltará a ser o mesmo. "Um homem só pode ser fiel a um juramento", diz ele, num discurso feito de entrelinhas. A Desaparecida é não só um filme de admiráveis silêncios, mas também de meias-palavras e de eloquentes subentendidos. É neste plano, apenas pressentido, que se desenrola a paixão de Ethan pela cunhada, Martha (Dorothy Jordan). Terá sido este sentimento proibido que o manteve à distância? Nunca saberemos. Mas quando a casa do irmão é destruída pelos comanches, Ethan chama desvairadamente por Martha: adquirimos então a certeza de que este western encerra também uma profunda e trágica história de amor.
São ainda os ecos secretos da paixão por Martha que levam Wayne a deambular durante cinco anos um pouco por toda a parte, procurando obsessivamente resgatar a sobrinha Debbie, raptada pelos índios. É o único laço de família que lhe resta - a última amarra que o prende ao mundo e à memória da mulher que amou. Com ele, seguindo-o como uma sombra, galopa Martin Pawley (o malogrado Jeffrey Hunter), órfão de pai e mãe, filho adoptivo de Martha e Aaron. Este mestiço de índio, espécie de consciência moral de Ethan, é uma das grandes personagens de toda a obra de Ford: o seu humanismo congénito contrasta com a figura desencantada do confederado. Numa das mais belas cenas deste filme semeado de elipses, Wayne sugere-lhe o motivo por que jamais desistirá da busca por Debbie, a mais nova das suas sobrinhas: "Eles [os comanches] vão criá-la durante tempo suficiente para..." Não diz mais, mas a neve que cai, incessante, completa-lhe o discurso. É assim o grande cinema.
E quando enfim encontram Debbie as piores expectativas do homem que só fez um juramento haviam-se concretizado. Cruzam-se aqui diversas noções de honra que Ford sabiamente põe em confronto sem nunca assumir a pose de vendedor ambulante de "mensagens". As imagens dizem tudo - da arrepiante sequência em que Ethan descobre o escalpe de Martha à cena culminante, em que o duro confederado resolve enfim o dilema moral que há muito o perseguia no momento em que pega na sobrinha ao colo - a filha do amor da sua vida, sangue do seu sangue - e lhe diz, com toda a ternura que nele sobrevive: "Let's go home, Debbie." Momento mágico numa longa-metragem que está cheia deles.
Um filme sobre um amor impossível, um filme sobre o inapelável peso da solidão. Começa com uma porta aberta, rasgada para a beleza em estado bruto de Monument Valley, quando Martha vê Ethan a cavalgar no horizonte, e termina com o mesmo enquadramento. Só que Martha já não existe. Wayne, que chegara com atraso, parte agora, rumo ao desconhecido. Missão cumprida, é tempo de levantar âncora. Nunca saberemos de onde veio, nunca saberemos para onde vai. Sabemos apenas que, na guerra como no amor, ele se manteve fiel ao que jurou. Quantos poderão dizer o mesmo nas várias vidas que uma vida tem?