domingo, outubro 15, 2006

Um legado de Salazar

Miguel Sousa Tavares grita “basta” nesta edição do Expresso (sem ligação disponível), atirando-se pela enésima vez a Alberto João Jardim. Não serei eu a demarcar-me dele neste ponto: considero Jardim uma das figuras mais detestáveis da política portuguesa e não altero um milímetro esta posição quando me vêm lembrar que até hoje ele nunca perdeu uma eleição na Madeira. Mas começa a irritar-me a atitude daqueles sujeitos (não é o caso de Sousa Tavares) que só agora descobriram os males de Jardim e, pressentindo que o leão insular está moribundo, não hesitam finalmente em dar-lhe uma patada. Um desses casos, que só surpreende quem nasceu ontem, foi aqui já dissecado pelo João Gonçalves. E muito bem.
O que mais me interessou neste artigo de MST foram as primeiras linhas: “Em política, gosto daquelas frases curtas, incisivas, que, por dizerem o suficiente e o necessário, ficam para a História.” E dá como exemplo o “Obviamente, demito-o”, com que Humberto Delgado visou Salazar, e agora o “Basta” que José Sócrates, do alto da sua confortável maioria em São Bento, atirou a Jardim.
Passe a absurda comparação entre Delgado e Sócrates, a frase de MST torna-o afinal um admirador de... Salazar. Não me recordo de nenhum outro político português que tenha proferido tantas frases “curtas e incisivas”, e que digam “o suficiente e o necessário”, como o fundador do Estado Novo, autor de várias expressões que transcenderam a sua época e entraram no vocabulário corrente dos portugueses. Expressões como “viver habitualmente”, que define a nossa maneira de ser; “brandos costumes” – uma espécie de marca genética portuguesa; “orgulhosamente sós”, que caracteriza a nossa posição na periferia europeia; “em política, o que parece é” – frase que ganha novo impacto nesta era em que uma “boa imagem” tem valor político intrínseco; ou até o “rapidamente e em força” com que demandámos as angolas reais ou imaginárias através da História.
Tudo isto tem o cunho inconfundível de Salazar, que conhecia bem o valor das palavras – de tal modo que sabia projectá-las no futuro. Elas aí andam, no discurso político e jornalístico de todos os dias, sem que na maior parte das vezes seja reconhecida a sua origem por quem as repete à exaustão. É um legado que perdura, 36 anos após a morte do seu criador. Sinal inconfundível de que Portugal mudou menos do que muitos de nós desejaríamos. As coisas são o que são.