quinta-feira, outubro 19, 2006

A nova fé de madre Zita

Zita Seabra acabou de "virar a página". Em artigo de opinião dado à estampa no Público (sem ligação disponível), a actual deputada social-democrata, que já foi parlamentar comunista, emite hoje sobre o aborto opiniões que não passariam pela cabeça do arcebispo de Braga. Coisas como estas:
- "Desde o dia em que percebi que é tecnicamente possível determinar o sexo do filho que se vai ter às oito semanas, mais me questiono com a possibilidade de o aborto vir a ser livre. (...) Desde o dia em que vi aquele cartaz - cujo folheto promocional conservei -, não posso deixar de pensar nas pressões sobre uma mulher grávida, do segundo ou do terceiro filho, para que obtenha o almejado 'casalinho', e aborte ou não consoante o resultado da análise."
- "Hoje, o que move a modernidade, o subversivo, é a coragem de, contra tudo e contra todos, ser mãe e pai. O aborto, o desmancho, foi um passado de dor e mágoa de tantas mulheres que mais não conheciam e mais não podiam."
- "A dor daquelas mulheres [em 1986, na União Soviética de Gorbatchov], a quem faziam abortos sem anestesia, que ficavam na cama umas horas antes de serem mandadas para casa, deitadas em lençóis que nunca vi serem mudados, ficou-me para sempre na memória. O seu choro, os gritos lancinantes de dor de abortos a sangue-frio, tudo aquilo era uma verdadeira descida aos infernos!"
- "Custa-me ver que, vinte anos depois, continuamos a falar do aborto e a legislar como se as alternativas fossem as mesmas. E, pior, que continuemos a fingir que o recurso a um aborto é uma coisa comum, banal e mesmo um direito. A verdade é que todo este fingimento nunca retirará de mulher alguma a dor do sentimento de culpa."
- "Não deixar que nenhuma mulher sinta que o futuro lhe é roubado por ser mãe é, esse sim, o maior desafio que temos pela frente. Infelizmente, parecemos continuar sempre e só no aborto, quando é mesmo necessário virar a página para a vida."
Depois de ler tudo isto, belisquei-me: será possível que esta Zita Seabra que usa argumentos tão rasteiros e demagógicos na sua nova cruzada antiaborto, incluindo a memória das lágrimas vertidas numa clínica moscovita, seja a mesma que em 1983 foi "ponta de lança" para a legalização do aborto em Portugal? Percebo que uma pessoa mude de ideias a propósito seja do que for. Mas Zita Seabra não se limita a "virar a página": acaba de virar uma biblioteca inteira. A ex-pupila de Álvaro Cunhal faz agora prédicas dignas de uma madre superiora das Carmelitas Descalças. De uma fé para outra, sempre inabalável.