domingo, outubro 01, 2006

Grandes contos (1): Hemingway

Ernest Hemingway, que se tornou muito conhecido pelas suas proezas reais ou imaginárias na pesca, na caça e até na guerra, era afinal um indivíduo extremamente sensível, como demonstram vários dos seus contos - entre eles Um Gato à Chuva, que tem tradução portuguesa de Alexandre Pinheiro Torres (Livros do Brasil, Lisboa). Gabriel García Márquez considerou-o "o melhor conto do mundo". É uma singela história de cinco páginas, na melhor estética “minimal” de Hemingway - autêntico "mestre na arte do elipse", como bem assinalou Enrique Vila-Matas. Mas é quanto basta para nos proporcionar um dos mais perturbantes retratos de fragilidade feminina que já encontrei em literatura.
Um jovem casal americano hospedado algures em Itália. Têm todos os motivos para serem felizes. Todos? Talvez não. Pressente-se uma tensão subtil neste casal, revelada apenas no comportamento dela, subitamente identificada com a chuva que cai, com um gato desamparado que caminha à chuva. Há um jogo de contrastes nesta ficção povoada de personagens anónimas: o marido indiferente/o afável proprietário já idoso do hotel; a mulher pequena perante aquele homem alto que lhe provocava “um aperto na garganta”; a falta de desejo latente naquele quarto e a obsessão dela em resgatar o gato da chuva. (Desejo inconsciente de um filho que talvez acabe por nunca vir?) E, enfim, a presença obsessiva do dilúvio climático.
O rigor da meteorologia serve afinal de metáfora a este quadro humano tão singular mas também tão emblemático. Quantas mulheres terão sentido o mesmo “aperto na garganta” que esta americana vislumbrada pelo génio de Hemingway entre os pingos de chuva?

Foto: Michele Rain