domingo, agosto 06, 2006

A palavra ao leitor

Esta posta que aqui deixei há dois dias, sobre o desaparecimento progressivo da caricatura política na imprensa portuguesa, suscitou na caixa de comentários do Corta-Fitas um interessante conjunto de reflexões do José Bandeira, um dos nossos melhores cartunistas. É útil que estas reflexões fiquem acessíveis a um maior número de leitores cá do blogue, o que me leva a transcrevê-las aqui. Com a devida vénia e um abraço ao Bandeira, que não é só bom a desenhar - é também bom a escrever. Nota: o "boneco" aqui reproduzido é um cartune de Angeli - originalmente publicado no jornal brasileiro Folha de São Paulo - que figurava no meu texto que esteve na origem desta réplica:

"1. O cartune português não é menos acutilante que o brasileiro; é a situação política que é diferente. A única semelhança que consigo ver entre Lula e Sócrates é que um usa barba e o outro está de férias. Das condições políticas que os rodeiam, nem vale a pena falar. A «qualidade» da situação política é fundamental para gerar bons cartunes. Exemplos: a queda da URSS, o 11 de Setembro, as duas guerras do Golfo, quando D. Duarte Pio disse a palavra «merda», o dilema de Sampaio, PSL, PSL e PSL. Sócrates é muito pouco caricaturável; Cavaco, sendo facilmente caricaturável, não fez ainda nada que justificasse grandes rasgos de humor. Lá chegaremos, lá chegaremos.
2. Na verdade, os cartunistas portugueses – sobretudo os que não têm carreiras de 20 anos que lhes dêem a protecção do nome – até têm razões de sobra para receios: a sua situação laboral é sempre precaríssima, sujeita a dispensa ao primeiro excesso ou à primeira mudança de director. A protecção legal é praticamente inexistente e depende exclusivamente da solidariedade da direcção. A excepção ao recibo verde era precisamente o meu bom amigo Onofre Varela, que tinha um contrato de trabalho – mas apenas porque também era gráfico, note-se (foi dispensado, há alguns anos, do jornal onde trabalhava com uma indemnização). Isto não significa que os cartunistas, por muito filhos que tenham para criar e casas para pagar (os que conseguiram levar o banco a crer que eram pessoas de bem), não façam o seu trabalho sem receios. A maior parte é meio passada e está-se nas tintas para a segurança no trabalho. Em suma, quem tem medo tem à escolha outras carreiras mais agasalhantes que a de cartunista.
3. O caricaturista não decide do destaque que o seu trabalho tem ou não num jornal: esse é um critério puramente editorial. Note-se, a propósito, que Rafael dirigia os jornais para onde desenhava.
4. As reacções mais virulentas, nos dias que correm, vêm da «sociedade civil», sobretudo quando se fala de religião, aborto, homossexualidade e temas afins; e não dos políticos, que de há dez, quinze anos a esta parte aprenderam a conviver com o humor político (a contragosto, é certo, mas aprenderam).
5. Cada cartunista tem o seu estilo próprio. No Brasil também os há para todos os gostos. O Sam e o seu Guarda Ricardo, por exemplo, jamais teriam tido o sucesso que tiveram se a bitola fosse apenas a da agressividade. Claro, há sempre quem esteja disposto a ver boçalidade onde outros vêem acutilância, e elegância ou subtileza onde outros não vêem senão pusilanimidade.
6. Para concluir: shit happens. Descendente que é (diz-se) de um antepassado comum aos humanos, o cartunista passa por períodos de maior e menor inspiração e qualidade, assim como de maior ou menor agressividade. Acontece a todos, não é assim?"
José Bandeira