Traição e culpa
Não sou religioso, muito menos teólogo, mas a questão da traição e da culpa levantada pela Isabel, em posta anterior sobre os textos gnósticos, leva-me a uma pequena reflexão de leigo. No texto canónico, Judas não é o único discípulo que duvida de Jesus, mas é o único sem redenção. Nunca achei credível que alguém capaz de tal traição, e recebendo pouco dinheiro por ela, se suicide logo a seguir. Na história alternativa, Judas surge como uma espécie de instrumento de Jesus, fazendo o supremo sacrifício de se condenar a uma maldição eterna porque Jesus precisa de ser traído e morto. Não estamos perante uma traição, mas a acção de Judas produz culpa, pois ele liberta Jesus do seu corpo e, ao fazê-lo, não deve ser compreendido por ninguém. Isto pode justificar o suicídio. Ou seja, o texto não canónico dá novo sentido à personagem. Também se compreende que não tenha sido incluído na Bíblia, sobretudo pela complexidade da ideia de que uma traição pode ser supremo sacrifício ou pelas simples contradições que introduz. Enfim, tentando retirar o contexto religioso e levando em conta apenas o ponto de vista literário, esta é uma grande história. No filme de Martin Scorcese, “A Última Tentação de Cristo”, adaptado do romancista grego Nikos Kazantzaki, também encontramos um Judas cujo papel é crucial, ao garantir que Jesus cumpre a sua missão, não cedendo à tentação de ser um homem comum. Uma coisa é certa: depois de Jesus, Judas é certamente a figura mais complexa do Novo Testamento.