Um longo e lindo feriado
Rua Nascimento Silva, 107. Este endereço é conhecido de melómanos do mundo inteiro. Foi aqui que um poeta e um compositor revolucionaram a música, alterando-a para sempre. O poeta era Vinícius de Moraes, o compositor era Antonio Carlos Jobim, o ano era 1958: desta genial parceria nasceu o disco Canção do Amor Demais, na voz de uma cantora de segunda linha chamada Elizete Cardoso. A diferença estava na qualidade das canções, que rompiam com a banalidade do samba-canção então em voga. E sobretudo em dois temas acompanhados ao violão por um tal de João Gilberto (que no disco figura apenas como instrumentista): “Outra Vez” e “Chega de Saudade”.
Nessa altura nenhum deles imaginava que estava a fazer história. Era o tempo das vozes potentes, cheias de vibrato, próprias para serem escutadas ao fundo de salões de baile – ninguém supunha que se cantasse de outra forma. Mas o baiano João Gilberto insistia em cantar “baixinho”, o que causava urticária nos especialistas do sector. Quando gravou “Chega de Saudade”, logo após a versão de Elizete, um desses especialistas, em São Paulo, partiu o disquinho de 78 rotações bradando: “Esta é a merda que o Rio nos manda!”
Como tantas vezes acontece, na música e não só, este “especialista” nada percebia do assunto. “Chega de Saudade”, com a voz e violão de João Gilberto do Prado Pereira de Oliveira, inaugurou uma era na música popular. A partir daí todos passaram a querer cantar assim. “Baixinho”, como quem sussurra ao ouvido.
Nascia a Bossa Nova. A origem da expressão permanece obscura. Noel Rosa usara a palavra bossa num samba de 1932 (“O samba, a prontidão e outras bossas / são nossas coisas, são coisas nossas”). E à entrada de um espectáculo realizado no auditório do Grupo Universitário Hebraico, ainda em 1958, uma funcionária escreveu a giz num quadro: “Hoje, Sylvinha Telles e um grupo bossa nova.” Sylvinha cantava em sintonia com João Gilberto. A expressão pegou, hoje todos a conhecem, usa-se e abusa-se dela. Mas a funcionária permaneceu anónima: se tivesse patenteado o rótulo, ganharia uma fortuna.
Estas e muitas outras histórias desfilam no delicioso livro Chega de Saudade, do brasileiro Ruy Castro. Ao longo de mais de 400 páginas, assistimos ao encontro de Vinícius e Jobim, somos apresentados a Dick Farney, Carlos Lyra, Roberto Menescal, Ronaldo Bôscoli, Luís Bonfá, o malogrado Newton Mendonça, Nara Leão, Elis Regina... Descemos aos botequins da Lapa, flanamos pelos bares de Ipanema. Começamos num Brasil onde “In the Mood” e “On the Sunny Side of the Street” eram êxitos nas rádios do Rio com títulos traduzidos foneticamente – “Edmundo” e “O Sobrinho da Judite”. E acabamos num Brasil rendido à sofisticada batida da bossa nova que conquistava os maiores nomes da canção universal: Lena Horne, Sarah Vaughn, Nat King Cole, Peggy Lee, Andy Williams, Perry Como, Tony Bennett, Violeta Parra.
E até Frank Sinatra se rendeu.
Em Dezembro de 1966, quando tomava um chope no seu bar predilecto – o Veloso, onde há quem jure que nasceu a sua “Garota de Ipanema” –, Jobim recebeu uma chamada telefónica. “Ligação dos Estados Unidos”, avisou o proprietário do botequim. Era Sinatra. Convidava-o a gravar um disco com ele. Sinatra/Jobim, como viria a chamar-se o disco, mostra-nos um Sinatra muito diferente do registo habitual, cantando à maneira de João Gilberto temas imortais como “Corcovado”, “Dindi”, “Insensatez” e “O Amor em Paz”.
“A última vez que cantei tão baixo foi quando tive laringite”, gracejou o intérprete de “Strangers in the Night” após as gravações. Valeu a pena: o disco foi um monumental sucesso de público e de crítica, ganhando vários prémios Grammy.
Outras gerações foram conquistadas pela magia brasileira: Eric Clapton proclama a sua adoração incondicional por João Gilberto, Sting nunca se cansa de enaltecer Jobim, Diana Krall e Karrin Allyson incluem temas de Vinícius e Jobim nos seus novíssimos reportórios.
A era da bossa nova, num mundo marcado pela guerra fria e pelo terror nuclear, foi “um longo e lindo feriado”, na síntese feliz de Ruy Castro. Quem diria que tudo começou no fio de voz de João Gilberto que enfureceu o tal expert de São Paulo?
Nessa altura nenhum deles imaginava que estava a fazer história. Era o tempo das vozes potentes, cheias de vibrato, próprias para serem escutadas ao fundo de salões de baile – ninguém supunha que se cantasse de outra forma. Mas o baiano João Gilberto insistia em cantar “baixinho”, o que causava urticária nos especialistas do sector. Quando gravou “Chega de Saudade”, logo após a versão de Elizete, um desses especialistas, em São Paulo, partiu o disquinho de 78 rotações bradando: “Esta é a merda que o Rio nos manda!”
Como tantas vezes acontece, na música e não só, este “especialista” nada percebia do assunto. “Chega de Saudade”, com a voz e violão de João Gilberto do Prado Pereira de Oliveira, inaugurou uma era na música popular. A partir daí todos passaram a querer cantar assim. “Baixinho”, como quem sussurra ao ouvido.
Nascia a Bossa Nova. A origem da expressão permanece obscura. Noel Rosa usara a palavra bossa num samba de 1932 (“O samba, a prontidão e outras bossas / são nossas coisas, são coisas nossas”). E à entrada de um espectáculo realizado no auditório do Grupo Universitário Hebraico, ainda em 1958, uma funcionária escreveu a giz num quadro: “Hoje, Sylvinha Telles e um grupo bossa nova.” Sylvinha cantava em sintonia com João Gilberto. A expressão pegou, hoje todos a conhecem, usa-se e abusa-se dela. Mas a funcionária permaneceu anónima: se tivesse patenteado o rótulo, ganharia uma fortuna.
Estas e muitas outras histórias desfilam no delicioso livro Chega de Saudade, do brasileiro Ruy Castro. Ao longo de mais de 400 páginas, assistimos ao encontro de Vinícius e Jobim, somos apresentados a Dick Farney, Carlos Lyra, Roberto Menescal, Ronaldo Bôscoli, Luís Bonfá, o malogrado Newton Mendonça, Nara Leão, Elis Regina... Descemos aos botequins da Lapa, flanamos pelos bares de Ipanema. Começamos num Brasil onde “In the Mood” e “On the Sunny Side of the Street” eram êxitos nas rádios do Rio com títulos traduzidos foneticamente – “Edmundo” e “O Sobrinho da Judite”. E acabamos num Brasil rendido à sofisticada batida da bossa nova que conquistava os maiores nomes da canção universal: Lena Horne, Sarah Vaughn, Nat King Cole, Peggy Lee, Andy Williams, Perry Como, Tony Bennett, Violeta Parra.
E até Frank Sinatra se rendeu.
Em Dezembro de 1966, quando tomava um chope no seu bar predilecto – o Veloso, onde há quem jure que nasceu a sua “Garota de Ipanema” –, Jobim recebeu uma chamada telefónica. “Ligação dos Estados Unidos”, avisou o proprietário do botequim. Era Sinatra. Convidava-o a gravar um disco com ele. Sinatra/Jobim, como viria a chamar-se o disco, mostra-nos um Sinatra muito diferente do registo habitual, cantando à maneira de João Gilberto temas imortais como “Corcovado”, “Dindi”, “Insensatez” e “O Amor em Paz”.
“A última vez que cantei tão baixo foi quando tive laringite”, gracejou o intérprete de “Strangers in the Night” após as gravações. Valeu a pena: o disco foi um monumental sucesso de público e de crítica, ganhando vários prémios Grammy.
Outras gerações foram conquistadas pela magia brasileira: Eric Clapton proclama a sua adoração incondicional por João Gilberto, Sting nunca se cansa de enaltecer Jobim, Diana Krall e Karrin Allyson incluem temas de Vinícius e Jobim nos seus novíssimos reportórios.
A era da bossa nova, num mundo marcado pela guerra fria e pelo terror nuclear, foi “um longo e lindo feriado”, na síntese feliz de Ruy Castro. Quem diria que tudo começou no fio de voz de João Gilberto que enfureceu o tal expert de São Paulo?
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