Como o acaso vira a vida do avesso
E se Adolf Hitler, quando saiu da sua Linz natal para concretizar o sonho de ser pintor, não tivesse chumbado na admissão à academia de belas-artes de Viena? A pergunta, para quem gosta de fazer leituras psicológicas da história universal, tem razão de ser: um Hitler reconhecido como artista pela elite vienense jamais teria precipitado a II Guerra Mundial.
E se James Dean não tivesse desaparecido tragicamente, ao volante de um Porsche prateado, com apenas 24 anos, em 1955? Imaginemo-lo disforme e grotesco como o Brando crepuscular ou destruído pela sida, como aconteceu a Rock Hudson: não sobraria espaço para o mito, só possível porque os deuses o levaram tão jovem para o seu Olimpo.
Uma porta que se fecha na cara, um pouco mais de pressão sobre um pedal: um quase-nada capaz de mudar o mundo. “O acaso é uma parte da realidade. O inesperado acontece nas vidas de todos nós com uma regularidade quase entorpecente.” São palavras de Paul Auster, um dos autores contemporâneos que mais têm sublinhado a importância do acaso na viragem de qualquer vida. Quantas vezes a realidade não supera os mais assombrosos cenários de ficção?
Herbert L. Matthews foi um daqueles homens cujas vidas mudaram para sempre num só dia, que para ele constituiu simultaneamente o apogeu da sua carreira de jornalista e uma data fatídica que jamais o largou. Era um repórter que se distinguira ao serviço do New York Times na Guerra Civil de Espanha e na II Guerra Mundial antes de o instalarem, durante uma década, num gabinete de editorialista. Naquele dia, 17 de Fevereiro de 1957, conseguiu o furo da sua vida: entrevistou Fidel Castro na Sierra Maestra.
Castro liderava um pequeno grupo de guerrilheiros que se opunham à ditadura de Fulgencio Batista mas era praticamente desconhecido fora de Cuba. Foi Matthews quem o transformou num mito ao projectá-lo para a manchete do seu jornal a 24 de Fevereiro, uma semana após ter entrevistado o jovem comandante barbudo que Batista jurara ter morto uns meses antes. Afinal Fidel não só estava vivo como comandava “centenas de homens”, como Matthews garantira na reportagem.
O veterano jornalista, já com 57 anos, deixara-se iludir: Castro tinha apenas 18 homens armados na Sierra Maestra. Mas o mito do resistente hercúleo estava lançado: o furo jornalístico transformou-se no maior veículo de propaganda da “revolução” cubana, que triunfaria menos de dois anos depois – e se transformou numa ditadura mais feroz e muito mais longa do que a de Batista.
Herbert L. Matthews, antes tão louvado pela sua proeza, passou a ser contestado nos Estados Unidos à medida que Castro revelava a sua face de autocrata sem escrúpulos. Considerado um herói em Cuba, país que continuou a visitar quase até à morte, em 1977, recebeu críticas contundentes dos seus próprios colegas, que o consideraram um peão ao serviço do comunismo castrista. Depois de se reformar do New York Times, em 1967, radicou-se na Europa e na Austrália. Obstinado até ao fim, nunca denunciou o carácter ditatorial da “revolução” nem admitiu ter-se enganado quando assegurou aos leitores que Castro era um democrata genuíno que só pretendia instaurar a democracia na ilha. Em 1969, ainda o considerava “um dos homens mais extraordinários do nosso tempo”, dando razão aos seus críticos: o jornalista que denunciara a ditadura de Batista era incapaz de denunciar a ditadura de Castro.
Outro repórter do New York Times, Anthony De Palma, disseca este caso num livro brilhante, agora editado em Portugal pela Bizâncio: O Homem que Inventou Fidel. Tese: Matthews tornou-se prisioneiro da sua manchete. Reconhecer os erros do ditador “teria diminuído a sua própria importância” enquanto jornalista que o deu a conhecer ao mundo. Conclusão: por vezes é muito ténue a linha que separa a verdade do mito e mesmo um jornalista experimentado pode cair nas malhas da propaganda. A vida de Matthews teria sido bem diferente se não tivesse subido à Sierra Maestra naquele dia, escapando à monotonia do trabalho de gabinete em busca, mais do que de uma notícia, do “reconhecimento” que, segundo Hegel, é uma característica inerente à espécie humana. Sem esse golpe do acaso, perderia uma cacha mundial mas mantinha incólume a sua reputação, que assim foi manchada para sempre.
E se James Dean não tivesse desaparecido tragicamente, ao volante de um Porsche prateado, com apenas 24 anos, em 1955? Imaginemo-lo disforme e grotesco como o Brando crepuscular ou destruído pela sida, como aconteceu a Rock Hudson: não sobraria espaço para o mito, só possível porque os deuses o levaram tão jovem para o seu Olimpo.
Uma porta que se fecha na cara, um pouco mais de pressão sobre um pedal: um quase-nada capaz de mudar o mundo. “O acaso é uma parte da realidade. O inesperado acontece nas vidas de todos nós com uma regularidade quase entorpecente.” São palavras de Paul Auster, um dos autores contemporâneos que mais têm sublinhado a importância do acaso na viragem de qualquer vida. Quantas vezes a realidade não supera os mais assombrosos cenários de ficção?
Herbert L. Matthews foi um daqueles homens cujas vidas mudaram para sempre num só dia, que para ele constituiu simultaneamente o apogeu da sua carreira de jornalista e uma data fatídica que jamais o largou. Era um repórter que se distinguira ao serviço do New York Times na Guerra Civil de Espanha e na II Guerra Mundial antes de o instalarem, durante uma década, num gabinete de editorialista. Naquele dia, 17 de Fevereiro de 1957, conseguiu o furo da sua vida: entrevistou Fidel Castro na Sierra Maestra.
Castro liderava um pequeno grupo de guerrilheiros que se opunham à ditadura de Fulgencio Batista mas era praticamente desconhecido fora de Cuba. Foi Matthews quem o transformou num mito ao projectá-lo para a manchete do seu jornal a 24 de Fevereiro, uma semana após ter entrevistado o jovem comandante barbudo que Batista jurara ter morto uns meses antes. Afinal Fidel não só estava vivo como comandava “centenas de homens”, como Matthews garantira na reportagem.
O veterano jornalista, já com 57 anos, deixara-se iludir: Castro tinha apenas 18 homens armados na Sierra Maestra. Mas o mito do resistente hercúleo estava lançado: o furo jornalístico transformou-se no maior veículo de propaganda da “revolução” cubana, que triunfaria menos de dois anos depois – e se transformou numa ditadura mais feroz e muito mais longa do que a de Batista.
Herbert L. Matthews, antes tão louvado pela sua proeza, passou a ser contestado nos Estados Unidos à medida que Castro revelava a sua face de autocrata sem escrúpulos. Considerado um herói em Cuba, país que continuou a visitar quase até à morte, em 1977, recebeu críticas contundentes dos seus próprios colegas, que o consideraram um peão ao serviço do comunismo castrista. Depois de se reformar do New York Times, em 1967, radicou-se na Europa e na Austrália. Obstinado até ao fim, nunca denunciou o carácter ditatorial da “revolução” nem admitiu ter-se enganado quando assegurou aos leitores que Castro era um democrata genuíno que só pretendia instaurar a democracia na ilha. Em 1969, ainda o considerava “um dos homens mais extraordinários do nosso tempo”, dando razão aos seus críticos: o jornalista que denunciara a ditadura de Batista era incapaz de denunciar a ditadura de Castro.
Outro repórter do New York Times, Anthony De Palma, disseca este caso num livro brilhante, agora editado em Portugal pela Bizâncio: O Homem que Inventou Fidel. Tese: Matthews tornou-se prisioneiro da sua manchete. Reconhecer os erros do ditador “teria diminuído a sua própria importância” enquanto jornalista que o deu a conhecer ao mundo. Conclusão: por vezes é muito ténue a linha que separa a verdade do mito e mesmo um jornalista experimentado pode cair nas malhas da propaganda. A vida de Matthews teria sido bem diferente se não tivesse subido à Sierra Maestra naquele dia, escapando à monotonia do trabalho de gabinete em busca, mais do que de uma notícia, do “reconhecimento” que, segundo Hegel, é uma característica inerente à espécie humana. Sem esse golpe do acaso, perderia uma cacha mundial mas mantinha incólume a sua reputação, que assim foi manchada para sempre.
................................................................................................................
O Homem que Inventou Fidel
Autor: Anthony De Palma
Editora: Bizâncio
Páginas: 328
Classificação: ****
Etiquetas: Leituras