Antologia Corta-Fitas (IX)
Elogio da ficção científica
Quando era pequeno, devorava romances da velhinha colecção Argonauta, que o meu pai comprava. Eram pequenos milagres, capas dos melhores pintores e traduções feitas por escritores de qualidade. Foi assim nos primeiros 120 números da colecção. As histórias, essas, eram pura magia: a exploração de mundos imaginários, utopias, civilizações estranhas, viagens e descobertas, alucinações e sonhos, conflitos do futuro e perigos à espreita, fantasias, ideias loucas.
Conheço numerosos leitores de policiais, mas o policial nunca me interessou demasiado. No género literário, sempre preferi a ficção científica (FC). Enquanto o policial se baseia na construção de um mistério, desmontado a pouco e pouco, a FC tem uma ideia base e, à volta desta, desenvolve um ambiente, mais ou menos fora da realidade. Isto explica a razão pela qual a FC tem contos tão bons, de H. G. Wells, Isaac Asimov, Ray Bradbury, Fredric Brown ou Philip K. Dick, entre muitos outros. Expor uma ideia, por muito complexa que seja, pode não precisar de muito texto. Alguns excelentes escritores tentaram o género, por vezes começaram as suas carreiras a escrever contos de FC. É o caso, por exemplo, de Kurt Vonnegut, um nobelizável, que tem um livro publicado na colecção Argonauta, no início da fase descendente desta. Em português, ficou com o título abstruso de Utopia 14, mas na realidade é um romance inicial do grande escritor, Player’s Piano, uma distopia sobre um mundo altamente mecanizado, onde os robots substituíram inúmeros trabalhadores. A sociedade divide-se entre os que trabalham (sob a ameaça de perderem os respectivos empregos) e uma espécie de "ralé", que não tem ocupação e vive da assistência social. O livro, muito irónico, foi escrito nos anos 50 e parece-se demasiado com o mundo contemporâneo.
Há outros exemplos de grandes escritores que começaram na FC, Bradbury, Ballard, mas o meu favorito é Philip K. Dick, que penso ser um dos maiores do século XX. Dick é um visionário e traz para a literatura duas ideias fundamentais: a incerteza sobre o que é o real e a manipulação constante que o ponto de vista exerce sobre a realidade. O autor cria constantes jogos mentais em torno destas duas noções. Não é por acaso que tem sido tão adaptado (e imitado e até plagiado) em recentes filmes de Hollywood.
Este post já vai demasiado longo (podia escrever o dia todo sobre este encantamento) mas não queria deixar de alertar o leitor que pretenda prosseguir estas pistas para uma descoberta que fiz recentemente, inteiramente por acaso. Existe uma robusta tribo de FC em Portugal, que sabe sobre o tema, que publica regularmente contos originais de FC. Suponho que é uma forma de resistência.
Luís Naves, 3 de Novembro de 2006
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