Fora de Série (2)
A insustentável leveza do leste
Em 1974 e 1975, Portugal descobriu que até aí ignorara uma parte do mundo. Nesse tempo, houve excursões ao paraíso do leste e chegavam ao Coliseu as danças e cantares de Krasnoiarsk, a ópera moldava e os acrobatas de Moscovo. Houve um fascínio quase doentio pelo bloco socialista. De tal forma o fenómeno se tornara ideológico, que deixou de ser possível ficar no meio da barricada a apreciar o panorama: ou se bebia a propaganda até à última gota (eles viviam numa gigantesca Vida Soviética a cores e Soljenitsyne, o agente da CIA, inventara cada palavra do seu Gulag); ou os do leste eram todos comunas, comiam criancinhas e até os periquitos nasciam já com cor vermelha.
Enfim, esta crónica não pretende falar de política, mas apenas lembrar que na televisão, no pequeno quadradinho mágico, essa clivagem também se fez sentir.
Um dos heróis da época chamava-se Kloss e tinha a patente de capitão. Acho que esta série polaca foi vista por todos nós um pouco ao contrário, pois era mais complexa do que parecia. Hoje, é fácil chegar a esta afirmação, na medida em que já sabemos o que a História ditou para o bloco socialista, que começou a ruir exactamente na Polónia.
Tento explicar melhor. Kloss era um agente polaco infiltrado no poderoso exército nazi. A sua inteligência superior permitia-lhe descobrir os segredos militares alemães e passá-los à resistência e aos aliados. Em cada episódio, após muitos perigos, o espião triunfava.
Na altura, escapavam-nos as subtilezas das divisões polacas entre comunistas e nacionalistas, os crimes, a partilha da Polónia no pacto germano-soviético (aqui, entrava bem uma história real, do dia em que deixei de acreditar no sistema de ensino). Mas, sobretudo, não podíamos compreender a metáfora escondida naquela história de duplicidade. Kloss era também um símbolo da Polónia submetida, obrigada a esconder a verdadeira natureza e os sentimentos mais íntimos. O destino do agente duplo era, nessa perspectiva, íntimo. Para mim, adolescente, aquilo não passava de uma boa história; mas Kloss era um herói sem esperança de regressar aos seus, envolvido numa luta desesperada, visto como eterno Judas. Pensando bem, era o jogo duplo dos povos submetidos no império soviético. Compreenderia isso mais tarde, ao ver os filmes de Andrzej Wajda (Kanal ou Cinzas e Diamantes)
Dizem-me que o actor Stanislaw Mikulski foi brilhante em Kloss, mas confesso que não me lembro desse aspecto. Por vezes, na minha memória incerta, as histórias de Kloss confundem-se com as dos Quatro Amigos e um Cão, que a bordo do seu T-34 vão pulverizando os panzers nazis. Era outras das séries de leste, essa menos metafórica.
Enfim, nesse tempo aprendi a gostar da Polónia. Ainda sei dizer “Muito bem, senhor Capitão”, com irrepreensível pronúncia varsoviana. Chateia-me quando vejo um snob a desvalorizar o leste. Tenho nostalgia destas séries ingénuas com tantas coisas nas entrelinhas e uma sensação de bom recuo no tempo quando leio a palavra koniec.
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