quarta-feira, agosto 22, 2007

Da Hungria, com amor (1)

Curiosamente, o que mais me surpreendeu foram as retretes. Na Hungria, alguém algures numa data para mim incerta teve a mais escatológica ideia jamais oferecida ao universo: Colocar o buraco da retrete na extremidade oposta à que é tida como natural no resto do planeta. Talvez fosse vontade de deixar uma marca civilizacional, marcar a diferença. Como se não bastasse a língua capaz de levar ao desespero qualquer especialista em aramaico pré-diluviano. Talvez. Mas fruto de uma personalidade perversa foi certamente, e o homem que registou a patente detentor de uma mente distorcida, bem reflectida nesta tirania da visibilidade intestina.
Na Hungria - ó minha chocada e agora para sempre definitivamente perdida horda de leitores - sempre que libertamos aquilo que as entranhas rejeitam, esse mesmo aquilo tomba e permanece num planalto de louça, imóvel, expectante, em diálogo com os nossos piores receios e maiores incertezas, passível de ser removido pela enxurrada do autoclismo, é certo, mas não sem que antes tenhamos sido confrontados com a inevitabilidade do nosso mais secreto e indesejável interior.
É certo que nenhum húngaro sai de casa sem antes ficar informado, até à exaustão, sobre o seu estado de saúde e tudo o que não conseguiu digerir na refeição anterior, apesar desse milagre vegetal que é a paprika. Mas, ao mesmo tempo, é também confrontado com a maior cacetada ontológica que alguém pode receber. Nós somos o que comemos, como alguém disse. Mas também o que, daquilo que comemos, libertamos. Na Hungria, a retrete é o nosso espelho mais profundo. A porta indesejável que se abre para a saída final.