quinta-feira, julho 19, 2007

Uma escrita feliz

Nalguns comentários aos meus modestos escritos mais “intimistas” aqui no Corta-Fitas, fui encontrando reacções adversas à minha “irritante” escrita “feliz”. Essas críticas acusavam-me de uma visão parcial, ou enviesadamente superficial da realidade. Uns comentários apaguei, outros não; mas até julgo entender bem essa má vontade: a herança do velho pessimismo romântico gerou uma ditadura estética, muito difícil de contornar. A descrença, o sarcasmo e a ironia são motes totalitários dos quais poucos autores escaparam com vida. De facto, “dizer bem” nos dias que correm é difícil, não vende. E no fundo podemos sempre desconstruir uma atitude nobre, um bom sentimento, decompô-lo em partes mesquinhas de modo a não comprometer os parâmetros. No outro extremo, a aberração, o grotesco, garante o sucesso do espectáculo, e relativiza a mediocridade estabelecida.
Em minha defesa, salva-me a mediania da minha escrita, a despretensão da minha existência. Ironicamente, as minhas obvias limitações literárias libertam-me de quaisquer desses deveres ou compromissos estéticos: uso a escrita por motivos profissionais, e estou nos blogues por mero divertimento.
Influenciável, durante a minha prolongada adolescência, empenhadamente alimentei a descrença e a melancolia. Mergulhado nos neuróticos fluidos rosados dos anos 70, durante muito tempo não dispensava a choraminguice de Roger Waters, os murmúrios alucinados de Lou Reed, os selváticos esgares de Patty Smith, ou uma triste balada de Nick Cave. Isso é que era cool. O Homem era mau, a guerra fria condenara-nos a todos, e a culpa era toda do pai. E o fim do mundo era já amanhã, facto que desde logo resolvia tudo. Entretanto ia bebendo da mais negra literatura, de génios como Capote, Camus, Steinbeck ou Malraux até quase perder o pé naquela escuridão. Não havia revolução, não havia resolução, antes uma natureza sem sentido. Existencialmente irrequieto, um dia deixei-me ir ao fundo do meu umbigo - o sítio mais desinteressante do universo. Quando voltei, muito mais tarde, cheguei diferente.
Porque não temos que ser obrigatoriamente infelizes. E porque a depressão é uma luxuosa patologia burguesa. O maior dos egoísmos, um enorme enfado.
Hoje, não tenho grande pachorra para o narcísico pessimismo militante. Tal e qual como a oposta euforia, ambas são perspectivas extremas da realidade, no mínimo inverosímeis. Entendo muito bem o potencial romanesco dum carácter misantropo, amargurado, bipolar. É a adrenalina de caminhar no arame, sobre o vazio, sempre pleno... de angustiadas emoções. Bem jogado, com algum charme, pode ser bom para o engate, um manancial de sedução. Assim se construíram muitos mitos e venerados ídolos do século XX. E depois, o pessoal acasala melhor enroscado, assim, cúmplice contra o mundo, românticas vitimas dos outros... sempre “dos outros”, num opaco limbo irreal.
De facto, a minha vida não produz um romance, não tem heróis ou moinhos de vento. Responsável pelas minhas escolhas, vivo numa família grande e agitada, filhos e enteados, que me fazem a vida negra ou me encantam até aos píncaros. É uma vida normal, um empenhado projecto de compromissos e fidelidade, premissas hoje tão mal vistas e pouco excitantes. Mas este é já um amor quase antigo, construído de rituais e de quotidiano, tantas vezes monótono e feito de acontecimentos singelos. Com os miúdos, os tachos, os sogros, a mobília... e tantos ruídos já tão familiares. Como quando o pequenote, de olhos esbugalhados, se encontra a primeira vez com o mar a seus pés. Ou quando, ensonado a meio da noite, encontro o olhar pisco e sereno do meu amor, sentado ali com o bebé ao colo... seguro. Imagens bonitas onde tudo ganha outro sentido. Um significado ainda maior. Estados de Graça que eu gosto de registar, para nunca esquecer.
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Um agradecimento especial ao Jorge Lima, ele sabe porquê.

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