Os anos da rádio
A telefonia foi para mim durante muito tempo uma inestimável companhia e uma janela para o mundo, principalmente o da música. Tenho uma leve reminiscência da primeira que me fez companhia: foi um pequeno “transístor” forrado a cabedal castanho oferecido pelos meus avós no final dos anos sessenta. Foi através da rádio que ouvi passar a música, as modas, os acontecimentos. Até a revolução e as "inventonas". Na minha telefonia, confesso, passaram também muitos domingueiros relatos de futebol, pois não havia outra forma de acompanhar a jornada desportiva. Com aquela histérica verborreia do locutor, emocionado, eu roía as unhas todas.
Criado no meio de uma família grande e com muitos irmãos, foi com a música e com os livros que delimitei o meu espaço e preservei minha empreendedora solidão. De olhar fisgado numa qualquer luzinha do aparelho passei deliciadas e indolentes horas. Era assim que os meus sonhos mais secretos voavam leves.
De ouvido na telefonia privei intimamente com muitos mais ou menos simpáticos locutores. Do Igrejas Caeiro ao Carlos Cruz, passando pelo Luis Filipe Barros, do João David Nunes à Maria José Mauperrin, passando pelo Jorge Perestrelo. Foram muitas as vozes para as quais inventei caras, sempre tão diversas das reais. Que nunca se nos deveriam ser desvendadas para evitar desilusões maiores. Olhe-se bem a figura que nos saiu da simpática voz do Nuno Markl!
Em pequeno, lá em casa na sala de estar havia um velho aparelho Grundig por debaixo da televisão. No chão, eu sentava-me de pernas cruzadas, esperando ansioso por algum sinal de vida, algum som, enquanto as válvulas aqueciam. Tudo começava quando uma pequena barra luminosa se enchia com uma estranha e líquida luz azul que assinalava a plena sintonização da frequência. Normalmente o aparelho estava sintonizado no programa 2 da Emissora Nacional (pelo meu pai), donde eu mudava para o Rádio Clube Português, que me parecia bem mais animado. Era nesta estação que ouvia umas cançonetas e com sorte apanhava a emissão dos Parodiantes de Lisboa que desesperadamente galhofavam trivialidades que eu mal entendia. Tudo isto com o patrocínio da casa Sol, na Rua da Vitória.
Carregando-se nuns botões beje marfim do grande rádio, trocavam-se os mundos que soavam como apitos díspares, sirenes várias ou misteriosos sinais de morse. E orações muçulmanas. Mas aquele rádio já tinha “frequências modeladas” e eu sentia com gosto a diferença no troar da orquestra no grande altifalante. O horário imperialista da televisão cedo acabou com estas veleidades radiofónicas.
À noite no aconchego do quarto, no meu “transístor” tocava o Quando o Telefone Toca, entre um livro da Condessa de Ségur e um álbum de Spirou em luta contra o terrível Zorglub. Foram os meus tempos de infância ao som dos Beatles, de Angie, dos Procol Harum, de Mammy Blue ou de José Cid...
Mais tarde, depois da revolução e durante o PREC, em FM (um pouco para lá dos 108 MHz), podia-se espantosamente sintonizar as transmissões da Polícia Militar. E testemunhar assim todo um mundo louco que se desconstruía. Enquanto medrava a minha ansiosa adolescência, veio o rock n’ roll do Programa 4 da RDP. O João David Nunes, o Punk Rock, o programa Dois Pontos com os álbuns inteirinhos, o Em Órbita para ouvir música antiga e… as tabelas de “tops”. Foi nessa época que descobri a MPB nos Cantores do Rádio do José Nuno Martins. Tudo isto em FM Estéreo, transmitido com os emissores de Bornes, Braga, Faro, Gardunha, Guarda, Lamego, Lisboa, Lousã, Monchique, Porto e Valença (!). Era a gloriosa alvorada do FM num país que, arquivada a revolução e a aventura marxista, despertava para o mundo. Virou-se então a vida da rádio para o Rock em Stock, com um Pão com Manteiga ao Fim-de-Semana, e o rock em português. Já entrados nos anos 80, às vezes de noite ouvia o Café Concerto de Maria José Mauperrin. Foi então que descobri as margens da cultura musical urbana, Brian Eno, Ryuichi Saakamoto e os Telectu de Jorge de Lima Barreto, entre outras doces intelectualices.
Finalmente por alturas do “boom” da liberalização da rádio, ainda me deixei cativar pela Correio da Manhã Rádio. Uma fantástica rádio digitalmente programada que me fornecia musica às toneladas. Sem palavras, sem parar. Para gravar, namorar ou estudar. Foram os meus tempos de Lloyd Cole, The Smiths e das luzidias pérolas da editora 4 AD.
Em 1988, numa trágica e inesquecível manhã de Agosto, com o Chiado em chamas, descobri a TSF. A notícia em rajadas, tipo matraca, que por muitos anos consumi com gosto.
De então até hoje oiço a rádio quase exclusivamente para fins informativos, no automóvel. Ouvir música tornou-se um ritual mais raro e quase solene. Momentos especiais arrancados à rotina familiar e com música escolhida com o meu critério e dependente da minha disposição. Mas é certo que continuo um aficionado da boa telefonia que no meu carro por momentos ainda descubro.
Criado no meio de uma família grande e com muitos irmãos, foi com a música e com os livros que delimitei o meu espaço e preservei minha empreendedora solidão. De olhar fisgado numa qualquer luzinha do aparelho passei deliciadas e indolentes horas. Era assim que os meus sonhos mais secretos voavam leves.
De ouvido na telefonia privei intimamente com muitos mais ou menos simpáticos locutores. Do Igrejas Caeiro ao Carlos Cruz, passando pelo Luis Filipe Barros, do João David Nunes à Maria José Mauperrin, passando pelo Jorge Perestrelo. Foram muitas as vozes para as quais inventei caras, sempre tão diversas das reais. Que nunca se nos deveriam ser desvendadas para evitar desilusões maiores. Olhe-se bem a figura que nos saiu da simpática voz do Nuno Markl!
Em pequeno, lá em casa na sala de estar havia um velho aparelho Grundig por debaixo da televisão. No chão, eu sentava-me de pernas cruzadas, esperando ansioso por algum sinal de vida, algum som, enquanto as válvulas aqueciam. Tudo começava quando uma pequena barra luminosa se enchia com uma estranha e líquida luz azul que assinalava a plena sintonização da frequência. Normalmente o aparelho estava sintonizado no programa 2 da Emissora Nacional (pelo meu pai), donde eu mudava para o Rádio Clube Português, que me parecia bem mais animado. Era nesta estação que ouvia umas cançonetas e com sorte apanhava a emissão dos Parodiantes de Lisboa que desesperadamente galhofavam trivialidades que eu mal entendia. Tudo isto com o patrocínio da casa Sol, na Rua da Vitória.
Carregando-se nuns botões beje marfim do grande rádio, trocavam-se os mundos que soavam como apitos díspares, sirenes várias ou misteriosos sinais de morse. E orações muçulmanas. Mas aquele rádio já tinha “frequências modeladas” e eu sentia com gosto a diferença no troar da orquestra no grande altifalante. O horário imperialista da televisão cedo acabou com estas veleidades radiofónicas.
À noite no aconchego do quarto, no meu “transístor” tocava o Quando o Telefone Toca, entre um livro da Condessa de Ségur e um álbum de Spirou em luta contra o terrível Zorglub. Foram os meus tempos de infância ao som dos Beatles, de Angie, dos Procol Harum, de Mammy Blue ou de José Cid...
Mais tarde, depois da revolução e durante o PREC, em FM (um pouco para lá dos 108 MHz), podia-se espantosamente sintonizar as transmissões da Polícia Militar. E testemunhar assim todo um mundo louco que se desconstruía. Enquanto medrava a minha ansiosa adolescência, veio o rock n’ roll do Programa 4 da RDP. O João David Nunes, o Punk Rock, o programa Dois Pontos com os álbuns inteirinhos, o Em Órbita para ouvir música antiga e… as tabelas de “tops”. Foi nessa época que descobri a MPB nos Cantores do Rádio do José Nuno Martins. Tudo isto em FM Estéreo, transmitido com os emissores de Bornes, Braga, Faro, Gardunha, Guarda, Lamego, Lisboa, Lousã, Monchique, Porto e Valença (!). Era a gloriosa alvorada do FM num país que, arquivada a revolução e a aventura marxista, despertava para o mundo. Virou-se então a vida da rádio para o Rock em Stock, com um Pão com Manteiga ao Fim-de-Semana, e o rock em português. Já entrados nos anos 80, às vezes de noite ouvia o Café Concerto de Maria José Mauperrin. Foi então que descobri as margens da cultura musical urbana, Brian Eno, Ryuichi Saakamoto e os Telectu de Jorge de Lima Barreto, entre outras doces intelectualices.
Finalmente por alturas do “boom” da liberalização da rádio, ainda me deixei cativar pela Correio da Manhã Rádio. Uma fantástica rádio digitalmente programada que me fornecia musica às toneladas. Sem palavras, sem parar. Para gravar, namorar ou estudar. Foram os meus tempos de Lloyd Cole, The Smiths e das luzidias pérolas da editora 4 AD.
Em 1988, numa trágica e inesquecível manhã de Agosto, com o Chiado em chamas, descobri a TSF. A notícia em rajadas, tipo matraca, que por muitos anos consumi com gosto.
De então até hoje oiço a rádio quase exclusivamente para fins informativos, no automóvel. Ouvir música tornou-se um ritual mais raro e quase solene. Momentos especiais arrancados à rotina familiar e com música escolhida com o meu critério e dependente da minha disposição. Mas é certo que continuo um aficionado da boa telefonia que no meu carro por momentos ainda descubro.