A vida é prosa

Aquela manhã, de mãos transpiradas e papel rasgado, de rosto corado e o olhar complacente do meu professor primário, foi clara. O caos de sentimentos que fervilhava em mim jamais viria ao mundo como poesia. Existia um outro caminho, algures, à minha frente, no meu futuro. Engoli em seco a derrota. Voltei a engolir outras, conforme fui testando atalhos. Quis ser actriz e, em sonhos, vi plateias rendidas, mas quando me apresentei num concurso da Comuna, nem passei da primeira fase. Nem chegou a ser humilhante. Assim que entrei para as audições, não restaram dúvidas de que não fazia parte daquela tribo. Aquele excesso de emoções enojou-me, acentuou-me a timidez. E, uma vez mais, gaguejei a declamar um poema, do qual esqueci o título e as palavras. A voz só não me atrapalhou quando, no último ano do liceu, o professor de português me escolheu para dizer um poema de Alberto Caeiro. 17 anos inseguros, declamei as palavras que falavam da morte e do regresso da Primavera. Disse, sem perceber o profundo sentido do que dizia, que a Primavera viria com a mesma força, estivesse eu viva ou morta. As flores e as árvores não seriam menos verdes que na Primavera passada. Não tropecei em nenhuma letra, em nenhuma mudança de linha. Não sabia ainda que este era um daqueles momentos em que o destino nos mostra o futuro, nos diz o que precisamos saber. Cinco anos depois, no corredor da morte do hospital, a Primavera estava em força e eu não sabia se estaria viva para assistir ao seu regresso. E foi isso que me levou a abrir o caderno, a colocar a caneta sobre o papel para deixar fluir o turbilhão de emoções. Em prosa, antes que a chama se apagasse.