domingo, dezembro 17, 2006

Carta aberta do cão Paco ao dono, o arquitecto Saraiva

Com pedido de publicação, foi-nos remetido este texto alusivo a um outro, ontem publicado na revista Tabu. Tratando-se de um assunto de inegável interesse público, entendemos dar sequência ao pedido, transcrevendo-o de seguida.

Querido Dono:

Confesso que me senti bastante ofendido com o artigo que publicaste ontem na revista Tabu (raio de nome, béu, béu!). Em primeiro lugar não pediste o meu consentimento para falares assim tão à vontade de mim. É verdade que sou o teu animal de estimação, que tenho sido o teu confidente nas horas más e que estava a teus pés no momento em que decidiste criar o Sol. Béu, béu! Mas isso não devia autorizar-te a pores e a dispores de mim desta maneira, contando a toda a gente alguns dos momentos íntimos que partilhámos, como aquela vez em que atiraste a bola pela janela para a parte de trás da casa para testares a minha inteligência. Sou cão, mas não sou burro: querias que me atirasse pela janela, que é tão alta? Nada disso: desci as escadas, saí pela porta, contornei o prédio e fui direito à bola.
Um homem inteligente como tu só podia ter um cão também inteligente como eu, modéstia à parte. Béu, béu!
Mas fiquei ofendido, repito. E sabes que tenho boas razões para isso. Então foste escrever lá também na revista do teu jornal que "uma das grandes vantagens dos cães é exactamente não falarem" e que "o facto de não falarem é mesmo uma das grandes vantagens dos cães sobre as pessoas"? Ora mas que decepção me deste! Então não tens confiança aqui no teu Paco que tão fiel te tem sido? Como foste capaz de escrever isto: "O que aconteceria se os cães falassem? Quantos dislates não diriam? Quantas irritações não nos provocariam?"
"Dislates", querido dono? "Irritações"? Nunca supus que fosses capaz de conceber coisas destas a meu respeito. Nem isto: "Se me fosse dada a possibilidade de escolher não gostaria que o meu cão falasse."
És ingrato, dono. Tomaram muitos humanos falarem tão bem como eu ladro. Imagina só como eu seria se falasse. Talvez até me convidasses para cronista do teu jornal. Béu, béu!
Olha, não quero ser injusto contigo. Houve algumas frases deste artigo de que eu gostei. Foram estas:
- "No preciso momento em que escrevo estas linhas, o Paco está deitado aos meus pés, parecendo bastar-lhe isso para ser feliz." (Fiquei derretido com esta...)
- "Para quem tem cães, é muito difícil admitir que o cão é um animal."
- "Falar dos cães é, no fundo, como falar dos bebés."
Pois é. Mas apesar disso foste contar a toda a gente aquela cena do dia em que roubei uma caixa de bombons e desapareci depois, durante duas horas, com medo de ser castigado, reconheço, por tê-los comido todos. Só faltou contares também o estado em que ficou a minha tripa por ter devorado aquela bodega e os estragos que isso provocou lá na sala. Nunca mais caio noutra. Béu, béu!
Deixaste-me envergonhado. O que vão essas pessoas todas pensar de mim? E ainda por cima publicaste uma fotografia minha ao teu lado em que não estou nada favorecido. Apareço com o meu ângulo menos fotogénico, sabes bem. Mas nem pensaste nisso...
"Para cada cão, o dono é um Deus", dizes tu. Já percebi que te habituei muito mal. Por isso abusas assim da minha confiança e nem preservas o meu direito à imagem nem proteges o meu bom nome.
Hás-de cá vir à procura de lambidelas. Hás-de voltar a pedir para eu te dar a pata e fazer chichi no Expresso. Hás-de voltar a atirar aquela bola pela janela para as traseiras do prédio a ver se eu vou logo, escada abaixo, à procura dela, para ta trazer de volta.
Mando-te ir a ti.
Ou eu não me chame Paco. Béu, béu!