quinta-feira, outubro 05, 2006

Grandes contos (3): Borges

Jorge Luis Borges fala-nos ao ouvido, com clareza e minúcia, como se nos narrasse histórias ocorridas nos confins do tempo. O mestre argentino manipula a ficção com artes de prestidigitador: nos seus contos, tudo nos soa à estrita realidade, por mais galopante que seja a imaginação deste homem que se dizia influenciado por Stevenson, Shaw e Chesterton.
Borges foi um dos raros autores que viu o seu nome coroar-se em adjectivo. Fala-se hoje do imaginário borgeano como se fala do kafkiano: nada mais natural, tratando-se de dois gigantes da literatura. O universo borgeano, povoado de encruzilhadas e labirintos, de equações matemáticas e de delirantes divagações históricas, faz-nos viajar no espaço e na memória, em permanente atmosfera de sonho, criando uma contínua erosão das fronteiras entre a ficção e o ensaio, entre a prosa e a poesia.
Incluído no seu livro Ficções (1944), em que cada texto é uma obra-prima, destaca-se este notável Pierre Monard, Autor do Quixote. Plagiador incansável, Monard dedicou toda a vida a uma virtuosa empreitada: reescrever o Quixote. Mas o seu perfeccionismo levava-o a refazer permanentemente o trabalho, ao jeito da interminável manta de Penélope. No fundo, "não queria compor outro Quixote - o que é fácil -, mas 'o' Quixote. (...) A sua admirável ambição era produzir umas páginas que coincidissem - palavra por palavra e linha por linha - com as de Miguel de Cervantes." (Edição portuguesa da Teorema/Círculo de Leitores, tradução de José Colaço Barreiros).
Este conto arquitectado num estilo que o despe de artifícios formais, quase utilizando a técnica de uma notícia de jornal, constitui a mais poderosa sátira à crítica literária que conheço, mostrando-nos um Borges no seu melhor: a erudição com rendilhados irónicos, entre pinceladas de absurdo sempre a traço fino.
"A elaboração, em Kafka, é menos admirável que a invenção", anotou um dia Borges, insaciável leitor e divulgador de outros autores. Palavras que fazem ricochete: poder-se-ia dizer o mesmo deste prodigioso inventor de mundos e de mitos.