Grandes contos (2): Camus
Pode um conto ser deliberadamente político sem nunca parecer que o é? Pode. Albert Camus dá-nos um exemplo admirável numa das histórias incluídas na excelente colectânea de narrativas intitulada O Exílio e o Reino (1957). O conto a que me refiro, O Hóspede, é daqueles que nos perduram na memória graças à poderosa sugestão visual da escrita de Camus, na sua elegância sincopada. Uma espécie de “Hemingway revisitado por Kafka”, na definição algo irónica de Sartre, que nunca escondeu uma certa aversão pelo autor d'O Estrangeiro, um dos raros escritores franceses do século XX que jamais se deixou seduzir por sistemas totalitários. É este, aliás, o cerne deste conto hipnótico, que nos fala da solidão, do silêncio, da violência surda, da incomunicabilidade – e também de política, oculta num admirável jogo de metáforas: afinal que papel resta aos intelectuais num mundo que volta a ser dominado por pulsões irracionais de toda a espécie?
O professor Daru – alter ego do autor – encarna este dilema, no quadro da cruel guerra da Argélia, nunca aqui nomeada expressamente mas subjacente do primeiro ao último parágrafo. Camus, francês nascido na Argélia, sabia bem o preço a pagar por aqueles que, como ele, não optaram por nenhum lugar em nenhuma trincheira do conflito.
Num momento em que a História caminha a passo cada vez mais acelerado, há uma estranha actualidade neste confronto de culturas simbolizado no professor francês com alma de apátrida que dá abrigo por uma noite, na sua escola abandonada, ao árabe suspeito de ter infringido a lei. Em pano de fundo, com toda a sua carga simbólica, a nua imensidão do planalto argelino, às portas do deserto, magistralmente descrita pelo autor: “Daru contemplou o céu, o planalto, e, para além, as terras quase invisíveis que se estendiam até ao mar. Nesse vasto país, que ele tanto amara, estava agora só, completamente só.” (Edição portuguesa dos Livros do Brasil, tradução de Cabral do Nascimento).
Não é na irreparável solidão desse deserto que vive o homem contemporâneo, entre as certezas que se desmoronam e um terror sem rosto incrustado no nosso inconsciente colectivo?