A arma dele não perdoava
Sherlock Holmes, a criatura, foi sempre mais popular do que o criador, Conan Doyle. O mesmo se passou com Perry Mason, que ultrapassou largamente o seu criador, Erle Stanley Gardner, em reconhecimento público. Ou Nero Wolfe (criado por Rex Stout) e O Santo (por Leslie Charteris). Até Poirot e Maigret gozam hoje de maior notoriedade do que os seus autores, Agatha Christie e Georges Simenon. Com Mickey Spillane, agora falecido, era ao contrário: sempre foi mais popular do que Mike Hammer, o detective que criou. Ao ponto de não faltar quem pensasse que o detective era o próprio Spillane. Um detective muito diferente dos demais: forjado nos abismos da guerra, formado no auge do terror atómico, surgido depois de Auschwitz e Hiroxima, quando já nenhuma utopia era credível. Violento, amoral, Hammer odiava o compromisso com o mundo do crime. Ao ponto de, em obras como o Juiz Sou Eu e A Minha Arma não Perdoa, se confundir ele próprio com um criminoso pelos métodos que empregava. Foi esta a originalidade de Spillane, que não tardou a ter imitadores de quinta ordem, iniciando um repugnante subgénero no policial - o do detective-vingador a qualquer preço.
Nunca apreciei o estilo duro deste autor, que enriqueceu com os livros que produzia sem jamais esconder o ódio à literatura: os meus modelos de private eye são Marlowe (de Chandler) ou Lew Archer (de Ross Macdonald), seres magoados mas que conservavam um fundo de heroicidade romântica nada em consonância com a era sem heróis em que viviam. Hammer, pelo contrário, estava em plena sintonia com uma época em que se apagavam os últimos vestígios de uma ética colectiva, afogada em nome do sacrossanto determinismo individual.
A arma dele não tinha alma. Como as que matam em tantas rotas, do Sudão ao Líbano, nestes implacáveis tempos de Talião.