As teias da tradução
Se calhar fui eu que fiquei mal habituado, durante anos, ao ler as excelentes traduções de Fernanda Pinto Rodrigues para a Colecção Vampiro, dos Livros do Brasil. Mas não me convencem estas traduções modernaças dos policiais clássicos que a Asa tem vindo a reeditar. Ver toda a gente tratar-se por "tu" na Inglaterra provinciana dos anos 40 retratada por Agatha Christie, por exemplo, não me soa nada bem, embora tecnicamente um you tanto possa traduzir-se por "tu" como por "você". O problema, com estas novíssimas tradutoras muito activas no mercado, não é o domínio da língua inglesa, que costuma ser impecável: é o domínio do nosso próprio idioma, cujas subtilezas andam cada vez mais ignoradas. Num livro que acabei de ler, a idosa e formalíssima Miss Marple, em diálogo com um responsável policial, utiliza a expressão "passar cartão", que nenhuma velhinha daquela época e daquele extracto social empregaria. Páginas adiante, um comissário da polícia diz a um coronel que "a maioria dos presentes estava bastante passada". Soa bem? Claro que não: é linguagem urbana contemporânea, impossível de transpor para a boca de personagens do countryside inglês de há seis décadas. A questão de fundo é sempre a mesma: os padrões de exigência cultural baixaram drasticamente. Até em editoras respeitáveis e conceituadas, como é o caso.