Um bispo com lugar na História
Justíssima, a celebração do centenário de D. António Ferreira Gomes, antigo bispo do Porto. Num país amordaçado, D. António (1906-86) foi um dos raros membros da hierarquia da Igreja Católica a ousar afrontar a ditadura salazarista. A corajosa carta que dirigiu a Salazar, em 1958, fez mais para abalar muitas consciências, designadamente dos católicos, do que inúmeras proclamações retóricas da inócua oposição “oficiosa” da época. Este gesto solitário em clara defesa da democracia política e social valeu-lhe um exílio de dez anos , imposto pelo ditador, habituado a uma Igreja domada. E deu-lhe uma indiscutível autoridade moral, após o 25 de Abril, para contestar as tentações ditatoriais de sinal contrário que então emergiram. Fora do plano pastoral, D. António impôs-se também como um intelectual de prestígio, que nos legou umas Cartas ao Papa ainda hoje de uma espantosa actualidade. Lembro-me bem do primeiro texto que li dele: um notável prefácio aos Contos Exemplares de Sophia de Mello Breyner, capaz de ombrear com as melhores produções de crítica literária. Se fosse vivo, D. António seria o primeiro a insurgir-se com firmeza contra manifestações xenófobas, como a que aconteceu há dias em Vila de Rei: a coerência de princípios era um dos valores que o tornaram justamente afamado numa sociedade tão carente deles.