terça-feira, janeiro 08, 2008

Quantos livros se traduzem em árabe?

A Holanda é um exemplo de um país onde vigora a mais ampla liberdade de expressão? Terá sido, mas já não é. O assassínio do cineasta Theo Van Gogh, acusado de blasfemar contra o Islão, demonstrou como vivemos em regime de liberdade condicionada neste mundo pós-11 de Setembro. A confirmação surgiu há pouco, de novo dessa Holanda que muitos ainda apontam como paradigma da tolerância: o Museu Nacional de Haia recusou expor fotos e um vídeo da artista iraniana Sooreh Hera que usava dois modelos com máscaras do profeta Maomé e o seu genro Ali como se fossem um par homossexual. A artista, que se tem especializado em temática homossexual, alegou que este seu trabalho visava criticar a “hipocrisia” da religião muçulmana nesta matéria, mas não convenceu os responsáveis do museu. A sua obra “poderia incomodar certos sectores da população” e “um centro de arte não é um fórum político”: estes foram os dois argumentos utilizados para a recusa.
No século XVIII, Voltaire saiu em defesa da blasfémia ao saber que um cavaleiro fora torturado por denúncia das autoridades eclesiásticas francesas ao recusar descobrir-se quando passava uma procissão. A abolição do delito por blasfémia constituiu uma viragem civilizacional, tornando-se um dos factos mais emblemáticos da “Europa das Luzes” cuja herança muitos pretendem negar. Duzentos anos depois, a blasfémia volta a ser delito neste mesmo continente. Pago com a censura, no caso de Sooreh Hera, ou mesmo com a vida, como aconteceu com Theo Van Gogh, assassinado por um fanático holandês de origem marroquina.
Como a polémica em torno das caricaturas dinamarquesas já tinha demonstrado, os teocratas islâmicos pretendem impor o seu vasto cardápio de interditos aos bisnetos de Voltaire – e estão a conseguir esse objectivo com a cumplicidade activa dos mentores do “diálogo das civilizações”. Mas pode haver diálogo com quem mata ou manda matar para suprimir a circulação de ideias contrárias? Esta é uma das questões centrais do nosso tempo. Questão a que o filósofo francês Bernard-Henri Lévy dá uma resposta sem qualquer ambiguidade: “Não sou tolerante com os homens que obrigam as mulheres a usar véu. Não sou tolerante com os grupos que mantêm a prática da excisão do clítoris às meninas. Não sou tolerante com os apóstolos da jihad.” Palavras ditas num frente-a-frente que recentemente juntou, nas páginas do El Mundo, dois filósofos politicamente incorrectos. O outro é o espanhol Fernando Savater, que pôs o dedo nesta ferida: “O que hoje se enfrentam não são duas civilizações, mas a democracia e a teocracia. A concepção aberta, liberal, de direitos humanos, da democracia, e a concepção teocrática do Estado e da sociedade.” Duas concepções que podem ser comparadas deste modo: “Quantos livros se traduzem em árabe? Nos últimos dez séculos traduziram-se menos livros em árabe do que se traduzem agora por ano em Espanha ou França.”

Reflectir sobre estes temas é cada vez mais importante numa Europa onde a autocensura vai alastrando, paradoxalmente, em nome da “tolerância” com a civilização islâmica. Mas haverá mesmo uma “civilização islâmica”, que mereça um tratamento diferenciado e nos leve à supressão de direitos há muito adquiridos? A resposta vem ainda da boca de Savater: “Há culturas diferentes, mas uma só civilização. Todos compartilhamos o mesmo mundo. Quando Ossama bin Laden adoece, toma o mesmo tipo de remédios que Bush. Quando quer acabar com os inimigos, utiliza o mesmo tipo de armas e explosivos que Bush usa para acabar com os seus. A civilização – quer dizer, encontrar os melhores meios para resolver uma série de problemas – é a civilização industrial avançada em que estamos todos. Uns e outros.”
É por isto que o jornalista britânico Nick Cohen protesta contra a esquerda relativista, que é “totalmente a favor da emancipação das mulheres em Londres, Paris e Nova Iorque, enquanto se mantém indiferente à misoginia no Médio Oriente, África e Ásia”. Vem no seu livro O que resta da esquerda?, agora editado em Portugal. Serve para percebermos melhor o caso de Sooreh Hera e tantos outros que vão sendo notícia por aí.

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