Diário na enfermaria (4)
A D. Joselina tem um talento raro. Dona-de-casa, 60 anos, no primeiro contacto parece igual a todas as donas de casa de 60 anos, com um atencioso marido em todas as visitas e filhas e noras surpreendentemente iguais (os filhos e genros só telefonam e estão sempre muito ocupados em reuniões, mas também devem ser iguais entre si).
O primeiro sinal do talento da D. Joselina mostrou-se pouco depois de ela se deitar na cama. Stela, a cigana romena da cama ao lado, num silêncio hostil desde que foi apanhada a fumar na casa de banho, desatou a falar numa mistura de romeno e espanhol. De onde estou, só lhe via os braços morenos agitados no ar e a boca sem um único dente. A D. Joselina ouviu tudo, acenava e às vezes respondia em voz baixa.
Depois, foram as doentes das camas em redor, apoiadas nos cotovelos para poderem falar com a D. Joselina por cima das outras.
Como a D. Joselina piorou bastante, deixou quase de se mexer na cama. Da minha parede começaram a levantar-se mulheres em camisa de noite, a arrastar o suporte do soro para atravessar a enfermaria e chegar perto da cama da D. Joselina. Falam, falam, falam, e vejo-as regressar com o suporte de soro pela mão e os olhos molhados.
Passei agora pelo corredor. A D. Joselina está numa maca, a soro, à espera de ser levada para o bloco operatório. A seca enfermeira ucraniana precisou de ir buscar qualquer coisa a um armário atrás da D. Joselina. Foi o suficiente. À medida que me afastava, ouvia a voz da ucraniana tornar-se doce: - Sim, sim, D. Joselina, tenho um menino de nove meses! Quando estou no turno da noite ele fica com o pai e depois comigo....
As Nações Unidas deviam fazer uns castings pelos países, tipo Família Superstar, para descobrir talentos destes. Tenho a certeza de que a D. Joselina poderia ser uma pedra fundamental no diálogo das nações.