Cinema Nostalgia (5)
A memória mais remota que eu tenho do cinema? Talvez a daquela tarde em que fui com o Manuel ver a matinée infantil. Para ser rigorosa, na verdade não se tratava de uma primeira vez. Por essa altura já seria talvez uma veterana em tais andanças, mas a diferença é que nesse dia não fui acompanhada pelos pais, nem por qualquer adulto. Aos nove estreava-me a ir ao nimas com o namorado, seja lá o que isso for quando se tem nove anos... O Manuel era um puto de franja, ligeiramente mais novo que eu, pele morena e olhos azuis. Um gato! Conheci-o nessas férias na praia, e foi amor à primeira banhoca. Nessa tarde de Agosto, enquanto nos encaminhávamos pela rua fora rumo à espelunca onde projectariam o nosso filme, percebi, enfim, todas as potencialidades do cinema. Nesse dia descobri que o que se passa na tela não esgota o prazer que sentimos e que há dias em que o filme que mais interessa é mesmo o nosso.
Que fita vimos nessa tarde? Sei lá! Sentados lado a lado, muito ajuizados, olhos cravados na tela, estivemos - e arrisco a falar pelos dois - demasiado ocupados a fazer de adultos. De tal maneira que nem nos rimos muito das maluqueiras dos bonecos animados. Acho que foi nesse dia que o cinema entrou na minha vida. Terá sido pelas piores razões? Talvez, mas há amores assim. Começam pelo avesso e só depois ganham corpo. Bom... confesso que quando o meu "ganhou corpo" passou a parecer-se com o Robert Redford (sim, é ele que está na foto) e o Steve MacQueen, os rapazes que eu ia ver... Só depois comecei a interessar-me realmente pelo resto: realizadores, fotografia, argumentos, tudo o que deve importar a um cinéfilo mas que talvez não chegue para nos conquistar verdadeiramente se antes não tivermos - nós e o cinema - deixado um lastro de irrelevâncias e cumplicidades único e irrepetível.
O Manuel, hoje posso dizê-lo com toda a firmeza, tinha os olhos do Mel Gibson e o cabelo do Warren Beatty.