sábado, março 24, 2007

Sem tecto, entre ruínas

O João Pedro pôs bem o problema. O escândalo não é a transformação da casa onde nasceu e viveu António de Oliveira Salazar num museu em que se reúna alguma da iconografia do Estado Novo: não é possível apagar meio século de vida política em Portugal, marcada pela figura inconfundível do professor de Coimbra que ao tomar posse, em 1928, disse saber muito bem o que queria e para onde ia. Tanto sabia que permaneceu quarenta anos no poder, como um monarca quase absoluto. É pura estultícia presumir que isso se deveu apenas à eterna mansidão do povo português, à repressão policial ou à geopolítica. Salazar, por mais detestável que fossem as suas ideias e os seus métodos, tinha uma forte base social de apoio (evidente nas duas primeiras décadas do seu mandato) e méritos que eram particularmente valorizados na época em que ascendeu ao poder, como têm sublinhado autores tão insuspeitos como Fernando Rosas e Helena Matos. O seu legado pode e deve ser contestado. Mas querer apagá-lo da fotografia, como se jamais tivesse existido, constitui um disparate. Além de uma tarefa antecipadamente condenada ao fracasso, como se tem visto por esses concursos duvidosos que andam muito em voga por aí.
Volto ao princípio: o verdadeiro escândalo não é recuperar-se a casa de Salazar, mas manter a de Aristides de Sousa-Mendes em ruínas. Em Portugal, como dizia um famoso escritor, não se morre apenas uma vez: morre-se várias vezes. À morte física segue-se a morte civil, a perda definitiva de referências. As figuras históricas tornam-se espectros, o seu rasto esfuma-se na poeira das gerações. Aristides, que Salazar espezinhou em vida, continua a ser maltratrado pelo Portugal democrático que não sabe honrar a memória dos melhores de todos nós.