Grandes contos (5): Joyce
Vivendo em Roma, saudoso da sua Irlanda natal, James Joyce escreveu em estado de graça um dos mais belos textos de ficção em língua inglesa: um longo conto, quase uma novela, intitulado O Morto. É a última história incluída no excelente livro Gente de Dublin (1914), polvilhado de retratos densos e dramáticos de pessoas de todas as idades e condições na nebulosa capital irlandesa do início do século XX, ainda sob domínio inglês. George Steiner, com toda a razão, chamou-lhe "mestre da modernidade urbana": há uma Dublin reinventada pela pena de Joyce, adquirindo vida própria, bigger than life. Uma Dublin cheia de contrastes sociais e de oscilações meteorológicas que reflectem o estado de alma dos seus torturados habitantes.
O Morto podia ser a simples história de um jantar redigida numa toada quase musical, alternadamente em ritmo de valsa ou de polca, com ocasionais sopros de ópera. Mas, à medida que os parágrafos se sucedem, torna-se muito mais que isso, destacando-se como uma metáfora da própria Irlanda - no preciso instante em que um mundo ruía e outro ganhava forma. Sem o saberem, quase todas as personagens em redor daquela mesa farta, entre brindes de vinho do Porto e de xerez, testemunhavam o irreversível desmoronar de uma era: algumas, como as duas velhas tias, já sentiam rondar a morte; outras, mais jovens, estavam emocionalmente exauridas. Gabriel Conroy, o protagonista, resume tudo numa frase: "A nossa passagem pela vida é sempre cheia de memórias tristes" (edição portuguesa da Vega, tradução de B. de Carvalho).
Em pouco mais de 40 páginas, este conto atinge a densidade de um romance de Balzac ou de Flaubert. Fala-nos do sentimento de perda, de memórias nostálgicas e da erosão do tempo fazendo-nos desfilar figuras de todos os matizes como num coro polifónico: estão lá o padre ortodoxo, o alcoólico frívolo, o músico arrogante, a jovem idealista, o professor estrangeirado. Nesta Dublin estranha, invadida pela neve, perpassa ainda a evocação de uma paixão atraiçoada pela morte num tempo em que "todos se transformavam em sombras". Em crescendo, como nos compassos de uma ode musical, o autor conduz-nos aos fulgurantes parágrafos finais que tornam a história verdadeiramente memorável. Joyce, ainda longe de ser o reconstrutor do idioma que seria no seu Ulisses, era já aqui um estilista consumado - mestre na arte dos diálogos e na construção de atmosferas sibilinas.
Poderia dizer-se também, muito simplesmente, que este é um conto que nos fala de um amor impossível. Concluindo ser "preferível passar para o outro mundo no apogeu de uma paixão do que envelhecer e morrer" entre espectros do passado. Só lendo saberemos porquê.
Começa em allegro, termina em adagio: O Morto é uma magnífica sinfonia em celebração da vida.