sexta-feira, junho 09, 2006

O ópio do povo (9)

Corre pela imprensa e na blogosfera um curioso debate sobre intelectuais e futebol. Uma das teses é de que o intelectual não deve pronunciar-se sobre um fenómeno tão claramente do âmbito da cultura popular; se o fizer, deverá ter uma abordagem suficientemente sofisticada. Há também quem tenha escrito que os intelectuais, se quiserem escrever sobre o tema, têm de descer ao patamar de cultura popular. Nada de citações de filósofos quando se recordam jogadas clássicas. Mais, o intelectual, ao falar sobre o tema, não deve afastar-se da conversa de café.
Confesso que acho o debate bizarro. No meu dicionário, “não perceber nada de futebol” significa não entender bem as tácticas, não saber que jogador é que o míster deve colocar em campo para dar a volta a uma situação adversa, não compreender que o jogador fulano atrai três defesas adversários e abre todo um sector para os seus companheiros explorarem. Compreendo também que haja pessoas que não gostam do jogo e, por isso, não se pronunciem sobre o que para elas não tem interesse. Mas não vejo o problema de alguém apreciar um jogo pela sua beleza e comentar o fenómeno de forma culta.
A tarefa do intelectual é compreender o mundo que o rodeia e a cultura popular não lhe pode ser totalmente estranha. Pensem em Roma. Se os media romanos fossem omnipresentes, como os nossos, acho que haveria rios de crónicas e de artigos de jornal, incontáveis blogues e livros a comentarem lutas de gladiadores. A literatura latina prefere outros temas, o amor, por exemplo, mas o popular entretenimento da luta no circo romano não lhe é estranho.
Ainda mais do que em Roma, talvez exista no nosso mundo um grande afastamento entre cultura de elite e popular. Apesar de ser algo de tão presente na nossa vida quotidiana, o futebol é visto pela elites como assunto a menosprezar e a deixar só para conversas trogloditas, onde não há lugar para o lado estético do jogo.


Nota: Se vamos para o paralelo com lutas de gladiadores, o desporto favorito do mundo contemporâneo está em mudança, mas para melhor. Na fase mais civilizada de Roma, os espectadores preferiam os combates equilibrados aos massacres; nos tempos de crise, nas arenas corria mais sangue. No futebol de hoje, o povo também prefere jogos equilibrados, com golos e emoção até ao fim, em vez de bocejantes goleadas.