Vida de cão
É um cãozito rafeiro, habituado ao convívio humano. Suponho que foi abandonado por um dos condóminos do bloco de prédios onde vivo. O problema é saber qual – há cem apartamentos neste conjunto de cinco prédios. O facto é que o cãozito decidiu ficar à minha porta: há três dias que o vejo por lá, com a sua triste coleira castanha. É já velhote – certamente o motivo por que foi abandonado – mas parece bem de saúde. Anda esfomeado. Mas anda sobretudo com uma imensa fome de carinho. Para um cão, o dono é uma espécie de deus – senhor de todo o bem. Custa imaginar, a um ser dócil e crédulo como este, que o seu deus possa ser tão mau e tão mesquinho ao ponto de abandonar quem sempre se revelou grato e fiel, cúmplice atento de todas as horas.
Observo o rafeirito: olha a toda a volta e fareja, na fútil esperança de encontrar o dono. Tem uma imensa desolação no olhar. Levo-lhe comida, um recipiente com água. Não tarda a matar a fome e a sede, depois mira-me de novo com uma indescritível expressão de ansiedade. Quem disse que os cães não são inteligentes e sensíveis certamente nunca conviveu com eles...
Afasto-me por fim. Ele lá fica no seu improvisado posto, aguardando quem nunca mais virá. E vou reflectindo: como pode uma pessoa ser tão desumana ao ponto de abandonar assim um animal?